As feiras do rolo envolvem muito mais do que o livre comércio de quinquilharias e bugigangas. Por trás das dezenas de barracas, há um complexo sistema codificado que expressa a cultura e os costumes próprios dos moradores do lugar, seus sonhos e suas necessidades – além de mostrar o caminho para uma compreensão mais ampla dos fatores que levaram esses seres humanos a estar fazendo o que fazem, do jeito que fazem, de acordo com as limitadas possibilidades imposta pela cruel realidade que são obrigados a enfrentar. Elas sempre começam do mesmo jeito. Nos bairros pobres, incrustados nos confins da capital paulista, pessoas desempregadas levam mercadorias novas e usadas e dão início ao comércio. É uma alternativa para quebrar a corrente do abandono a que estão relegadas. Em pouco tempo, tudo cresce. E foge a qualquer controle. O ambiente é de extrema pobreza, composto por gente que vive à margem da sociedade. Campo fértil para a criminalidade. A feira exprime a luta pela sobrevivência, no cenário confuso onde se misturam roupas e calçados, óculos, relógios, brinquedos, peças de automóveis e de bicicletas, fiação elétrica, material hidráulico, celulares, computadores inteiros e aos pedaços, livros, revistas, discos, aparelhos eletrônicos, shows de música ao vivo, barracas de alimentação e animais de estimação. A expressão sofrida, amargurada, marca os rostos dessas pessoas, na maioria vítimas do desemprego. Comercializam mercadorias provavelmente roubadas em furtos e assaltos. Ali, nas feiras do rolo, misturados em ambigüidades nutridas pelos silêncios da prudência, dois universos se cruzam: o das pessoas que trabalham e o das que vivem da criminalidade. As feiras guardam semelhanças entre si. Vêm se multiplicando, como solução de sobrevivência para a pobreza. De quando em quando, mudam de endereço ou dia de montagem. Conhecidas e freqüentadas pela população local, são facilmente localizáveis. Nelas, famílias inteiras se esforçam para ascender, e sobrevivem, enquanto outras tantas afundam cada vez mais na pobreza, na delinqüência e na marginalidade. Em cada feira, a síntese de um crescimento desordenado. Muitos dos comerciantes, mesmo os que têm renda familiar de dois a três salários mínimos, moram em loteamentos clandestinos, em áreas invadidas ou favelas. E lhes falta de tudo: saúde, segurança, transporte, moradia digna, emprego. A carência os leva a um combate sem fim e a uma profunda solidariedade interna, no grupo. As feiras estão protegidas pelos chamados olheiros, vigias posicionados estrategicamente de maneira a disparar o alarme quando percebem alguma movimentação estranha. Também há feiras com seguranças contratados, para reprimir a ação de ambientalistas e jornalistas curiosos. Além dos produtos de roubos e furtos, o que mais preocupa a polícia é a venda de animais, principalmente aves. A precária situação sócio-cultural-econômica da população brasileira é a principal responsável pelo trafico de animais silvestres. A oferta nas feiras representa apenas uma parte da vasta oferta real, prudentemente escondida: as residências situadas num raio de 200 m das feiras são utilizadas como depósitos clandestinos. Se o cliente manifestar interesse em algum animal que não esteja exposto, a encomenda já está à sua espera. A descrição é feita por Marcelo Pavlenco: "Quando não é época de reprodução de psitacídeos (papagaios, araras, maritacas e periquitos) existem pessoas que capturam os adultos na natureza, portanto animais muito ariscos, cuja venda se tornaria difícil, por não serem mansos, nem filhotes. Nesses casos, o procedimento é o de vazar os olhos das aves para que, cegas, não reajam mais a estímulos visuais, dando assim a impressão de serem mansas por não se assustarem". Outro procedimento usado em feiras é drogar o animal com analgésicos, para deixá-lo entorpecido por algum tempo. O efeito da droga é temporário, o suficiente para vender o animal. Quando o efeito da droga passa, o pássaro se mostra extremamente amedrontado e inquieto – isto quando não morre. Quebrar o esterno – osso da parte frontal do peito das aves – com o polegar é outra prática comum dos comerciantes de aves, para vender um animal arisco como manso. Depois de ter esmagada uma parte de sua ossatura, a ave procura não se mover devido à dor violenta, criando-se, assim, a impressão de que se trata de um animal manso. As redes para captura de pássaros de pequeno e médio porte são confeccionadas de fios pretos, muito delgados e resistentes. A rede é camuflada no meio da paisagem, não sendo possível enxergá-la. O pássaro em vôo choca-se contra a armadilha, ficando enroscado. A prática de apanha permite ao caçador capturar grande número de aves todos os dias. Quando o pássaro se enrosca de tal maneira que fique impossível retirá-lo da rede, é comum o caçador cortar a ave viva em pedaços, para poder retirá-la sem que a rede se danifique. A SOS Fauna – Órgão de Defesa da Fauna e Flora Brasileira – é uma OnG que tem como objetivo desenvolver, incentivar e ampliar a educação ambiental; fiscalizar, pelos meios legais estabelecidos, o meio ambiente e suas derivações; e realizar trabalhos que visem garantir a proteção de nações indígenas e seus costumes, em todo o território nacional. De acordo com Marcelo Pavlenco Rocha, presidente da entidade, "ter um animal silvestre em casa, infelizmente, ainda é um hábito que faz parte da cultura do brasileiro". Estima-se que 70% do volume de animais retirados, anualmente, de nossas matas abasteçam o mercado interno, os outros 30% abasteceriam de animais silvestres o mercado internacional. O Brasil seria o responsável por 10% do volume mundial deste comércio.O tráfico de animais silvestres é a terceira maior atividade ilícita do mundo, perdendo somente para o tráfico de entorpecentes e de armas. No mundo inteiro, são movimentados, anualmente, cerca de US$ 10 bilhões no comércio ilegal de animais silvestres, onde o Brasil é responsável por um volume de 10 a 15% (de 1 a US$ 1,5 bilhão). Isto faz com que, por ano, cerca de 12 milhões de animais sejam retirados de nossas florestas. Além de fiscalização permanente é preciso mudar a legislação. "Precisamos trabalhar em cima da questão do tráfico de animais silvestres não esporadicamente, mas de forma permanente. Almejamos que as experiências sejam trocadas, que as ações sejam conjuntas e cada vez mais articuladas", afirma o advogado Antonio Carlos Gândara Martins, procurador da SOS Fauna. a Feira livre e do rolo do Jardim Helena em São Miguel Paulista. Funciona sempre aos domingos. O pico de negociações com animais silvestres ocorre por volta das 11h, quando cerca de cerca de 800 animais são expostos – na maioria, aves. Ação policial, Cerca de 200 pássaros silvestres e uma iguana foram apreendidos, em 20 de outubro passado, na feira no Jardim Helena, em São Miguel Paulista, zona leste. A ação, realizada pela Polícia Civil com o apoio da ONG SOS Fauna, resultou na prisão de seis pessoas, encaminhadas depois ao 22.º DP. Entre os pássaros, havia curiós, canários-da-terra e gralhas, vendidos em média por R$ 80. Agora, os animais ficarão à disposição do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, o Ibama . A Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, regulamentada pelo Decreto nº 3.179/99, dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e dá outras providências. De acordo com o advogado Antonio Carlos Gândara Martins, procurador da ONG SOS Fauna, "a pena prevista para traficantes de animais silvestres é de um a três anos de reclusão e multa de R$ 3 mil por unidade apreendida (triplicada em caso de reincidência)". Gândara defende o aumento do apenamento. "Não é possível continuar apenas fazendo termo circunstanciado, após se ter flagrado a pessoa comercializando o animal. É necessário tornar a lei mais rigorosa. Os autores desse tipo de crime devem ser submetidos a inquérito policial, as multas devem ter seus valores substancialmente aumentados e a prisão deve ser aplicável quando a lei for alterada. Somente com endurecimento e aplicação da lei mudaremos os costumes dos que compram e dos que vendem animais." A única coisa bem distribuída no mundo é bom senso. Tanto isso é verdade que todos acreditam que já têm suficiente. / ROGER LAPAN