terça-feira, 1 de junho de 2010


Cheguei em São Miguel com sete anos de idade, mais precisamente no Domingo de Ramos do ano de 1949, e lá permaneci por mais de quarenta anos. Ali cresci, trabalhei muito, e consegui vencer.Assisti à transformação, daquilo que não passava de um vilarejo, em um bairro com ares e status de uma grande cidade. Antes dos doze anos de idade fui engraxate, vendedor de sorvetes e entregador de roupas em uma lavanderia. Em compensação São Miguel deu a mim todas as chances e oportunidades que qualquer brasileiro de um grande centro podia ter.O bairro de São Miguel era servido pela Estrada de Ferro Central do Brasil, e a estação tinha o nome de Baquirivu. A Avenida São Miguel, que na continuação passa a ser Marechal Tito de hoje, chamava-se Estrada São Paulo-Rio, e antes da inauguração da Via Dutra, em 1950, era ela que fazia a ligação entre São Paulo e Rio de Janeiro.Por São Miguel passavam os ônibus que iam para o Rio de Janeiro, para todas as localidades do Vale do Paraíba e para o Norte e Nordeste. Quem passava pela estrada podia ver as dezenas de pensões que ficavam à beira das avenidas e ruas. Todas com um litro cheio de farinha de mandioca no centro de cada mesa.Apenas algumas de suas ruas eram asfaltadas e a maioria era de terra batida.Para quem quisesse ir de ônibus para São Miguel, saindo do centro de São Paulo havia duas opções: o trem de subúrbio da Central do Brasil ou um ônibus que saía da Praça Clovis Bevilaqua, que ia para o Bairro dos Pimentas. Ele passava por São Miguel, ia até o Jardim Helena entrando na estrada que passava pelo Casteluchi.Havia apenas dois ônibus que faziam a linha Penha-São Miguel. O ponto inicial era na Penha e o final na Rua da Estação. Depois que saía da Penha seguindo pela Avenida Amador Bueno da Veiga em direção a São Miguel havia casas somente até o Cine Paganini, e daí em diante somente terrenos baldios e muito mato. Pelo caminho ele servia aos moradores da Vila Buenos Aires, Curva da Morte, Ponte Rasa, Parque Cruzeiro do Sul, Vila Jacuí, Vila Siqueira, Vila Camargo e muitos outros. De São Miguel partiam ônibus para Vila Curuçá, Jardim Helena, Itaquera, Bairro dos Pimentas e Itaim. Por volta de 1958 a CMTC inaugurou a linha 202 ligando São Miguel ao Parque Don Pedro II.São Miguel na época era considerado terra dos nordestinos, mas para mim São Miguel foi muito mais que isso.Era o São Miguel do Clube da Nitro Química que transformava sua quadra de esportes em salão de bailes, onde Antonio Marcos foi calouro e onde pulei carnaval. Do E. C. São Miguel de uniforme vermelho e branco, cujo campo ficava na beira da linha trem. Da velha igreja feita de pau a pique da Praça Campos Sales. Da Rua da Fábrica e da Serra Dourada onde ficava o correio.São Miguel do pequeno Grupo Escolar Carlos Gomes, que ficava pertinho da estação de trens, onde tirei meu diploma do primário. Do tempo em que a feira era montada na Rua da Estação, rua onde ficavam as lojas de móveis, sapatarias e instrumentos musicais.São Miguel do Bar e Café do Velho bem na entrada da Avenida Pires do rio, da Serralheria Aurora e da Cidade Evans. Da padaria Yara, do Mercadinho São José e da Agência Leda, onde comprava meus livros e cadernos.São Miguel da Vila Siqueira e Vila Jacuí da primeira namorada, do primeiro beijo e do primeiro orgasmo. Do beijo que nunca esqueci da menina que hoje é minha esposa. Dos primeiros amigos da escola, dos parceiros do futebol, dos amigos de idades avançadas do jogo de bocha, que eu respeitava e destoava por minha juventude.São Miguel do primeiro carro e da primeira casa própria depois de casado. Das oficinas mecânicas de Milde Malavasi e de Lenio Rodrigues Rizzi, onde ganhei dinheiro trabalhando como mecânico.São Miguel do Cemitério da Saudade, e do cemitério antigo e pequeno, que ficava na Pires do Rio, e que guardou para sempre meu querido irmão Gilberto.São Miguel do Cine Lapenna onde vi Roy Roger, Rock Lane, Jim das Selvas e Tarzan nas matinês de domingo, e também do cine velho que levava o nome do querido bairro.São Miguel do Dr. Santana e Dr. Albano dos tempos em que médico sabia tudo e atendia a todos.São Miguel do Casteluchi, o alambique que ficava no caminho do Bairro das Pimentas onde havia uma ponte de madeira que passava apenas um carro por vez.São Miguel do Clube dos Duzentos com sede própria, mas impróprio aos não sócios. Onde nunca entrei.Do Bar do Antoninho onde jogava bilhar com meus amigos. São Miguel da Casa Paratodos, do grande amigo Mamede, que tão cedo nos deixou, onde comprei os móveis quando me casei.São Miguel do Auto peças Rachid e da oficina do Neno, o primeiro guincheiro da região.São Miguel da boate Havaí e do Tio Patinhas de muitas estórias incontáveis.São Miguel de Aurelino Soares de Andrade, seu eterno vereador.São Miguel da Nitro Química, que tocava o apito várias vezes por dia para a troca dos turnos de seus operários, e na passagem do ano tocava por quase meia hora sem parar. A mesma Nitro Química que na década de quarenta já matava todos os peixes do Tietê com sua poluição e deixava toda a região enfumaçada com cheiro de enxofre no ar.São Miguel da última morada dos meus avós maternos dos quais muita saudade ainda sinto.São Miguel de todas as minhas alegrias e também das minhas tristezas, principalmente daquelas que nunca dividi com ninguém e somente a nós dois pertencem.São Miguel que cresceu tanto e um dia quis ser independente se tornando município, mas que seus moradores, em plebiscito, disseram não.São Miguel que é parte da Cidade de São Paulo, onde vivi minha infância, minha juventude e me viu ficar velho, terás para sempre um espaço em meu coração. / ESCRITO POR João Eduardo Pantarotte