Nos últimos dias, o sistema judiciário fez duas descobertas: existem algemas no Brasil e o uso delas é um abuso, ainda mais grave quando na frente da televisão. A descoberta tem uma explicação: as algemas eram invisíveis enquanto os presos eram pobres e sem camisas. Descobriram que há abuso no uso de algemas. Pena que não estejamos descobrindo outros abusos, porque eles ainda não chegaram aos ricos. Durante séculos, nosso país utilizou o seqüestro de africanos para servirem como trabalhadores em nossa agricultura e ninguém via como seqüestro. Se um único brasileiro branco e livre fosse seqüestrado na África e levado para outro continente, a elite empresarial brasileira daquele tempo logo descobriria que havia um abuso na retirada de uma pessoa de sua casa para levá-la e vendê-la para o trabalho forçado. Esses mesmos escravos eram sujeitos à tortura, às penas de trabalho forçado, e à venda de seus filhos, como também às chibatadas. Mas era com os pobres, excluídos, que o abuso ficava invisível. Não era visto. O sistema judiciário daquele tempo ainda não tinha descoberto que isso acontecia. No século XXI ainda existem prisões diferenciadas para pessoas que cometeram o mesmo tipo de crime. Quando, raramente, um criminoso rico vai preso e fica preso, tem direito a uma prisão especial, diferente das infernais prisões onde são jogados os criminosos pobres. Por isso, não é visto ainda como abuso colocar um preso pobre nas condições das prisões comuns. Se algum dia, um rico for preso e não tiver um diploma superior, provavelmente o sistema judiciário brasileiro vai fazer outra grande descoberta: o abuso da má qualidade das prisões do brasileiro comum. Cerca de 15 milhões de adultos não sabem ler e outros 30 milhões não entendem o que lêem, porque os analfabetos, todos eles, são filhos de famílias humildes. Se um dia aparecesse um rico analfabeto, certamente o sistema judiciário faria a grande descoberta de que poder público é omisso ao deixar que isto aconteça no Brasil. Mas, os analfabetos são pobres, invisíveis. Estima-se que a cada minuto de ano letivo (200 dias, com 4 horas) 60 crianças abandonam a escola. Isso não é visto como abuso. Porque o abuso não é visto. Se uma única criança rica fosse impedida de estudar, o abuso seria rapidamente descoberto e provavelmente tratado. Como acontece quando faltam remédios para as doenças que vitimam os ricos e os pobres, mas sem qualquer criminalização das autoridades quando os hospitais públicos ficam superlotados. As autoridades do Poder Judiciário têm duas desculpas para explicar a invisibilidade dos abusos. A primeira, é que só podem agir quando provocadas por um advogado; e estes só trabalham para os ricos. O poder Judiciário, portanto estaria isento. Não teria culpa de que os defensores públicos sejam poucos, e de que os advogados mais competentes não trabalhem para os pobres. Esquecem de dizer que além da competência, influi também a rede de conexões que o advogado tem. A segunda justificativa é que a culpa é do Poder Legislativo que faz leis imperfeitas. A culpa é de todos nós que aceitamos um país onde há dois tipos de pessoas: os incluídos, beneficiários da lei; e os excluídos, vítimas da lei: A culpa é de todos que toleramos os abusos invisíveis. /Cristovam Buarque