A saudade é um fio tecido nas horas, nos dias, nos anos, matéria fina e imprecisa do tempo. Pode acontecer assim que a porta se fecha ou muito anos depois, quando velhas fotografias escapam das gavetas com personagens que não estão mais aqui, mas nunca saíram de nossas vidas. A saudade é um sopro da memória, imagem de crianças brincando, afetos se derretendo, velhos ao redor do fogo que ardia lançando fagulhas no último inverno, antes que tudo se dissipasse. Meu pensamento às vezes visita um longínquo jogo de bola, o formato de um bolo, a vergonha de usar um vestido de alças, o dedo que se prendeu na porta quando nossas dores eram apenas físicas. Só depois conhecemos as dores de alma, o contato com a angústia quando deciframos o significado do que se sente e que não vem de nenhum corte que se cura com band-aid. Nunca nos disseram que não haveria cura para o que fica sem resposta, para o impacto das notícias ruins, para as perdas que não se resgatam. Durante muito tempo achamos que tudo é reversível, como se nenhuma sensação durasse mais do que o instante em que as coisas acontecem. Só quando ganhamos a noção do tempo, tomamos consciência do que significa “nunca mais”, “adeus”, “não se esqueça de mim” e outras expressões que servem de sinal ou de consolo para coisas que não se repetem. A sucessão de acontecimentos obedece a uma ordem imprecisa. Estamos aqui hoje, podemos não estar amanhã, não há lógica no vácuo, nas ausências que acontecem de repente como um botão arrancado onde haveria flor, brisa e movimento. Se hoje volto ao assunto das minhas sensações mais íntimas, não é por tristeza ou um acontecimento súbito. Nem sequer estou triste, apenas afio o meu olhar, a visão em 360 graus, recapitulando um mar de emoções, de cheias e refluxos, de felicidades e sustos, de tensões e relaxamentos, de surpresas e esperas. De fluxos. A saudade neste instante é minha musa. O espelho retrovisor mostrando um disco na vitrola, uma sessão de cinema, um amigo fazendo música, um beijo trocado e alguns rostos que se distinguem na multidão como se a mente fizesse um zoom. O pensamento é o único mecanismo que nos faz voltar ao tempo, mas nunca às mesmas horas, aos mesmos dias, aos mesmos anos, porque a sucessão das coisas é a inexorável passagem que nos leva adiante, deixando para trás aquilo que foi perdido para sempre. Por isso hoje, quando reviro os fotogramas da memória, considero que há um filme pela metade, mas ainda sem desfecho. Uma história que pode ser escrita enquanto houver tempo, tinta, sangue e espaços em branco. Haveria muito mais a dizer, mas a rota circular do tempo não permite que se demore em fatos perdidos, páginas viradas, leite derramado sobre o tapete da existência plena Alguma coisa me diz: Não se debruce sobre o passado, sobre as perdas e os ganhos. Apenas puxe o fio da memória como quem visita a sua casa interior, abrindo salas, quartos, varandas onde a mobília afetiva permanece com a imaterialidade própria do amor e das ternuras que dão origem à saudade. Este sentimento condensado numa língua única e que significa o “banzo” de cada um de nós, exilados como passageiros sem o bilhete de volta. E pensar que me lembrei de tudo isso porque vi um trem cruzando a cidade e com ele cruzei a minha vida inteira /célia musilli