Não faz muito tempo, um amigo me escreveu dizendo que estava tendo problemas com a internet. Contou que sempre fora um usuário entusiasmado mas que, ultimamente, a Grande Rede estava ocupando vastas porções de sua vida. Não exemplificou e não revelou muitos detalhes, da sua existência virtual, mas eu entendi o que ele quis dizer. Aparentemente, meu amigo estava sofrendo de uma compulsão que a muitos atinge, a ponto de se perder a noção do que é real e do que é virtual na vida.Além dessa pessoa que me é próxima, e que eu não desconfiava ser internet addicted, conheci muita gente que levava duas vidas: uma na Grande Rede e outra fora dela. É natural, eu trabalho com internet e muitos tipos assim surgem no dia-a-dia. No começo, até, eu achava interessante forjar uma existência paralela e explorar suas possibilidades, mas depois comecei a achar o negócio meio doentio. Quem escreve na internet, seja por diversão, seja profissionalmente, já topou com fantasmas assim. Em geral, opositores ou críticos das nossas idéias, que não querem revelar sua identidade mas que desejam ardentemente combatê-las. Então emitem um comentário, usando nome e e-mail falsos. Alguns chegam a criar uma caixa postal para isso mas, mesmo assim, não posso caracterizar essa atitude como patologia – pois é relativamente comum nos meios. O que começou a me espantar foi um sujeito que, já há alguns anos, embarcou numa discussão insistente com um colunista, e este – caindo na dele – chegou ao ponto de marcar um encontro para resolver a disputa como se fosse um duelo. Os ânimos estavam exaltados, mas ninguém morreu. Quem “assinava” as mensagens me enviava cópias delas clamando para que eu “tomasse uma atitude”. Não tomei, claro. O missivista eletrônico acabou sumindo. Abrindo um parênteses, é impressionante como ilustres desconhecidos se sentem autorizados a proferir juízos definitivos sobre o que escrevemos – e depois ainda esperam que lhes seja conferido algum crédito. Por que vou acreditar na opinião de uma pessoa que, no mínimo, nunca vi e que, no máximo, para mim antes não existia? Mas acontece todo o tempo. Talvez porque os escritores sejam, por natureza, inseguros e se abalem com qualquer coisa, ou se derretam diante de um elogio supostamente amigo. O fato é que o “famoso quem” não raro atinge os seus objetivos. Escrevinhadores jovens e inexperientes são presas fáceis para as suas armadilhas. Mas voltando: o fenômeno foi chamar minha atenção quando percebi que, além de inventar um pseudônimo e usá-lo em situações onde é melhor se manter incógnito, alguns internautas criam para si uma vida inteira novinha em folha. Porque uma coisa é ser comentarista esporádico de fórum, e até se exceder às vezes, outra – bem diferente – é “se acostumar na fantasia” e viver uma identidade falsa como se fosse verdadeira. Vi isso em blogs. Pessoas que se entregam a cada frase mas que insistem em dizer que são “uma personagem de romance”. Então eu me pergunto: que ser humano é esse que, provavelmente vivendo uma vida miserável, precisa se alimentar de uma aventura romanesca na internet, de uma realidade que – fora da Web – não existe? Até aí, cada um é livre para ser louco e extravasar suas loucuras como quiser. E o problema não é tanto de quem publica uma porção de delírios, para o seu próprio deleite – o problema é de quem embarca nessa viagem, numa insanidade coletiva, e até “convive” com essa “pessoa”, chegando a tomá-la como conselheira da sua própria vida. Se o primeiro tipo se sentiu Napoleão no hospício e foi proclamar isso aos quatro ventos, o que dizer do segundo que – não satisfeito – resolveu seguí-lo? Isso, para mim, é doentio. Como se não bastasse, encontrei blogueiros que montavam outros blogs para elogiar a si mesmos. Tinham o trabalho de compor uma personalidade inteira, com nome, idade, endereço e preferências, para sustentá-la durante anos e para, no passo seguinte, consagrá-la através de outra personalidade, igualmente inventada. Quando conto essa história, o interlocutor em geral comenta: “É preciso tempo...”; “Haja tempo!”; “Como é que a pessoa arranja tempo?”. Eu não sei; e nem quero saber. Aliás, que realizem isso em blogs, e que haja uma platéia adestrada para bater palmas, não é algo que me preocupe realmente. A doença só foi me incomodar agora, recentemente, quando percebi que – dentro do próprio Digestivo – eu poderia estar publicando gente assim: que, fora da internet, não existe. Uma vez, inclusive, liguei para um colaborador e ele, ao atender, se embananou todo quando o chamei pelo nome que costumava assinar. Ou seja: era um nome falso; apesar do telefone verdadeiro (veja a que ponto chegamos...). Felizmente, hoje, não entra mais ninguém no site sem que eu não tenha visto, pelo menos, a cara, e que não tenha um endereço (postal) – verdadeiro. Infelizmente, porém, muita gente ainda sofre com esses “trotes” da vida virtual. Transformam a sua vida real num inferno, num tormento, tentando combater esses pequenos demônios da internet – que, como o spam, tendem a crescer exponencialmente. Aqui, por exemplo, fechamos os fóruns e esses “caronas” diminuíram bastante. Mas, e quem está ciberneticamente exposto? Nélson Rodrigues repetia que se as pessoas soubessem da vida sexual umas das outras, ninguém se olharia na rua. Pois eu digo: se os internautas soubessem da vida virtual uns dos outros, quase nenhum se olharia na rua também. /Julio Daio Borges