sábado, 14 de março de 2009

A BOA - FÉ !

Falta-me uma palavra aqui para designar, entre todas essas virtudes, a que rege nossas relações com a verdade. Pensei primeiro em sinceridade, depois em veracidade ou veridicidade (que seria melhor, mas que o uso não abonou), antes de pensar, por um tempo, em autenticidade… Decidi-me finalmente por boa-fé, sem desconhecer que essa opção pode exceder o uso comum da palavra. Mas é boa-fé, por não ter encontrado palavra melhor. O que é a boa-fé? É um fato, que é psicológico, e uma virtude, que é moral. Como fato, é a conformidade dos atos e das palavras com a vida interior, ou desta consigo mesma. Como virtude, é o amor ou o respeito à verdade, e a única fé que vale. Virtude aletheiogal, porque tem a própria vontade como objeto. Não, claro, que a boa-fé valha como certeza, nem mesmo como verdade (ela exclui a mentira, não o erro), mas que o homem de boa-fé tanto diz o que acredita, mesmo que esteja enganado, como acredita no que diz. É por isso que a boa-fé é uma fé, no duplo sentido do termo, isto é, uma crença ao mesmo tempo em que uma fidelidade. É crença fiel, e fidelidade no que se crê. Pelo menos enquanto se crê que seja verdade. Vimos, a propósito da fidelidade, que ela devia ser fiel antes de tudo ao verdadeiro: isso define muito bem a boa-fé. Ser de boa-fé não é sempre dizer a verdade, pois podemos nos enganar, mas é pelo menos dizer a verdade sobre o que cremos, e essa verdade, ainda que a crença seja falsa, nem por isso seria menos verdadeira. É o que se chama também de sinceridade (ou veracidade, ou franqueza), e o contrário da mentira, da hipocrisia, da duplicidade, em suma, de todas as formas, privadas ou públicas, da má-fé. Há mais, porém, na boa-fé do que na sinceridade – em todo caso é uma distinção que proponho. Ser sincero é não mentir a outrem; ser de boa-fé é não mentir nem ao outro nem a si. A solidão de Robinson, em sua ilha, dispensava-o de ser sincero (pelo menos até a chegada de Sexta-feira) e até tornava essa virtude sem objeto. Nem por isso a boa-fé deixava de ser necessária, em todo caso louvável e devida. A quem? A si, e isso basta. A boa-fé é uma sinceridade ao mesmo tempo transitiva e reflexiva. Ela rege, ou deveria reger, nossas relações tanto com outrem como conosco mesmos. Ela quer, entre os homens como dentro de cada um deles, o máximo de verdade possível, de autenticidade possível, e o mínimo, em conseqüência, de artifícios ou dissimulações. Não há sinceridade absoluta, mas tampouco há amor ou justiça absolutos: isso não nos impede de tender a elas, de nos esforçar para alcançá-las, de às vezes nos aproximarmos delas um pouco… A boa-fé é esse esforço, e esse esforço já é uma virtude. Virtude intelectual, se quisermos, pois refere-se à verdade, mas que põe em jogo (já que tudo é verdadeiro, até nossos erros, que são verdadeiramente errados, até nossas ilusões, que são verdadeiramente ilusórias) a totalidade de um indivíduo, corpo e alma, sensatez e loucura. É a virtude de Montaigne e sua primeira palavra: “É este um livro de boa-fé, leitor…” É também, ou deveria ser, a virtude por excelência dos intelectuais em geral e dos filósofos em particular. Os que dela carecem em excesso, ou que se pretendem livres dela, não são mais dignos desses nomes que os lisonjeiam e que eles desacreditam. O pensamento não é apenas um ofício, nem uma diversão. É uma exigência: exigência humana, e talvez a primeira virtude da espécie. Não foi suficientemente notado que a invenção da linguagem não cria em si mesma nenhuma verdade (pois todas elas são eternas), mas traz isto, que é novo: a possibilidade, não apenas da astúcia ou do logro, como nos animais, mas da mentira. Homo loquax: homo mendax. O homem é um animal que pode mentir, e que mente. É o que torna a boa-fé logicamente possível, e moralmente necessária. Dir-se-á que a boa-fé não prova nada; estou de acordo. Quantos canalhas sinceros, quantos horrores consumados de boa-fé? E, muitas vezes, o que há de menos hipócrita que um fanático? Os tartufos são legião, porém menos numerosos talvez, e menos perigosos, que os savonarolas e seus discípulos. Um nazista de boa-fé é um nazista: de que adianta sua sinceridade? Um canalha autêntico é um canalha: de que adianta sua autenticidade? Como a fidelidade ou a coragem, a boa-fé tampouco é uma virtude suficiente ou completa. Ela não substitui a justiça, nem a generosidade, nem o amor. Mas que seria uma justiça de má-fé? Que seriam um amor ou uma generosidade de má-fé? Já não seriam justiça, nem amor, nem generosidade, a não ser que corrompidos à força de hipocrisia, de cegueira, de mentira. Nenhuma virtude é verdadeira, ou não é verdadeiramente virtuosa sem essa virtude de verdade. Virtude sem boa-fé é má-fé, não é virtude. “A sinceridade”, dizia La Rochefoucauld, “é uma abertura de coração que nos mostra tais como somos; é um amor à verdade, uma repugnância a se disfarçar, um desejo de reparar seus defeitos e até de diminuí-los, pelo mérito de confessá-los.” É a recusa de enganar, de dissimular, de enfeitar, recusa que às vezes não passa, ela mesma, de um artifício, de uma sedução como outra qualquer, mas nem sempre, o que mesmo La Rochefoucauld admite, pela qual o amor à verdade se distingue do amor-próprio, que freqüentemente engana, por certo, mas que às vezes ele supera. Trata-se de amar a verdade mais que a si mesmo. A boa-fé, como todas as virtudes, é o contrário do narcisismo, do egoísmo cego, da submissão de si a si mesmo. É por intermédio disso que ela tem a ver com a generosidade, a humildade, a coragem, a justiça… Justiça nos contratos e nas trocas (enganar o comprador de um bem que vendemos, por exemplo não o avisando sobre determinado defeito oculto é agir de má-fé, é ser injusto), coragem de pensar e de dizer, humildade diante do verdadeiro, generosidade diante do outro… A verdade não pertence ao eu: é o eu que pertence a ela, ou que ela contém, e que ela permeia, e que ela dissolve. O eu é sempre mentiroso, sempre ilusório, sempre mau. A boa-fé liberta-se dele, e é por isso que ela é boa. Deve-se dizer tudo, então? Claro que não, pois não é possível. Falta tempo, e a decência o impede, a doçura o impede. Sinceridade não é exibicionismo. Sinceridade não é selvageria. Temos o direito de nos calar, e até devemos fazê-lo com freqüência. A boa-fé não proíbe o silêncio mas sim a mentira (ou o silêncio apenas quando mentiroso), e ainda assim nem sempre: voltaremos a isso. Veracidade não é patetice. Em todo caso, a verdade é “a primeira e fundamental parte da virtude”, como dizia Montaigne, que condiciona todas as outras e não é condicionada, em seu princípio, por nenhuma. A virtude não precisa ser generosa, suscetível de amor ou justa para ser verdadeira, nem para valer, nem para ser devida, ao passo que amor, generosidade ou justiça só são virtudes se antes de tudo forem verdadeiras (se forem verdadeiramente o que parecem ser), portanto se agirem de boa-fé. A verdade não obedece, nem mesmo à justiça, nem mesmo ao amor, a verdade não serve, nem compensa, nem consola. É por isso que, continua Montaigne, “é necessário amá-la por ela mesma”. Não há boa-fé de outro modo: “Aquele que diz a verdade porque é obrigado e porque ela serve, e que não teme dizer mentira, quando não importa a ninguém, não é suficientemente verdadeiro.” Não dizer tudo, pois, mas dizer – salvo dever superior – apenas o verdadeiro, ou o que se pensa ser verdadeiro. Há lugar aqui para uma espécie de casuística, no bom sentido do termo, que não enganará os que são de boa-fé. O que é a casuística? É o estudo dos casos de consciência, em outras palavras, das dificuldades morais que resultam, ou podem resultar, da aplicação de uma regra geral (por exemplo: “Não se deve mentir”) a situações singulares, muitas vezes mais ricas ou mais equívocas do que a própria regra, que nem por isso deixa de ser regra. A regra é bem enunciada por Montaigne, e é uma regra de boa-fé: “Nem sempre se deve dizer tudo, pois seria tolice; mas o que se diz, é preciso que seja tal como pensamos, senão é maldade.” Voltaremos a falar das exceções, para a regra que supõem e que não poderiam anular. A boa-fé é essa virtude que faz da verdade um valor (isto é, já que não há valor em si, um objeto de amor, de respeito, de vontade…) e a ela se submete. Fidelidade antes de tudo ao verdadeiro, sem o que qualquer fidelidade não passa de hipocrisia. Amor à verdade, antes de tudo, sem o que todo amor não passa de ilusão ou de mentira. A boa-fé é essa fidelidade, a boa-fé é esse amor, em espírito e em ato. Digamos melhor: a boa-fé é o amor à verdade, na medida em que esse amor comanda nossos atos, nossas palavras, até mesmo nossos pensamentos. É a virtude dos verídicos. O que é um homem verídico? É aquele, explicava Aristóteles, que “ama a verdade” e que por isso recusa a mentira, tanto por excesso como por falta, tanto por fabulação como por omissão. Ele se mantém “num meio-termo”, entre gabolice e dissimulação, entre fanfarronice e segredo, entre falsa glória e falsa modéstia. É “um homem sem meandros, sincero ao mesmo tempo em sua vida e em suas palavras, e que reconhece a existência de suas qualidades próprias, sem nada acrescentar a elas e sem nada delas subtrair.” Uma virtude? Claro: “Em si mesma, a falsidade é coisa baixa e repreensível, e a sinceridade coisa nobre e digna de elogio.” Felizes gregos, nobres gregos, para quem essa evidência não era nem superada nem superável! Se bem que… Eles também tinham seus sofistas, como nós temos os nossos, que essa ingenuidade, como eles dizem, fará sorrir. Pior para eles. O que vale um pensamento, a não ser pela verdade que contém ou busca? Chamo de sofística qualquer pensamento que se submete a outra coisa que não a verdade, ou que submete a verdade a outra coisa que não ela mesma. A filosofia é seu contrário na teoria, como a boa-fé o é na prática. Trata-se de viver e de pensar, tanto quanto possível, em verdade, ainda que à custa da angústia, da desilusão ou da infelicidade. Fidelidade ao verdadeiro, antes de tudo: mais vale uma verdadeira tristeza do que uma falsa alegria. Que a boa-fé tenha sobretudo de haver-se com a gabolice, pois resiste a ela, foi o que Aristóteles percebeu muito bem e que confirma sua oposição ao narcisismo ou ao amor-próprio. O amor a si? Não, é claro, já que o verídico é amável, já que o amor a si é um dever, já que seria mentir, simular, para consigo mesmo, uma impossível indiferença. Mas o homem verídico se ama como é, como se conhece, e não como gostaria de parecer ou de ser visto. É o que distingue o amor a si do amor-próprio, ou a magnanimidade, como diz Aristóteles, da vaidade. O homem magnânimo “preocupa-se mais com a verdade do que com a opinião pública, fale e age abertamente, pois o pouco caso que faz dos outros lhe permite exprimir-se com franqueza. É por isso que ele gosta de dizer a verdade, salvo nas ocasiões em que emprega a ironia, quando se dirige à massa.” Dir-se-á que a essa magnanimidade falta caridade, o que é verdade; mas não por causa da veracidade que ela comporta. Mais vale uma verdadeira grandeza do que uma falsa humildade. E também é verdade que ela se preocupa demais com a honra; mas nunca à custa da mentira. Mais vale uma verdadeira altivez do que uma falsa glória. O verídico submete-se à norma da idéia verdadeira dada, como diria Spinoza, ou possível, como eu acrescentaria: ele diz o que sabe ou crê ser verdadeiro, nunca o que sabe ou o que crê ser falso. A boa-fé exclui então toda mentira? Parece que sim, e quase por definição: como se mentiria de boa-fé? Mentir supõe que se conheça a verdade, ou que se creia conhecê-la, e que se diga deliberadamente outra coisa que não o que se sabe ou o que se crê. É isso que a boa-fé proíbe, ou recusa. Ser de boa-fé é dizer o que se pensa ser verdadeiro: é ser fiel (em palavras ou atos) à sua crença, é submeter-se à verdade do que se é ou se pensa. Toda mentira seria, pois, de má-fé, e por isso condenável. Esse rigorismo, que a meu ver é dificilmente sustentável, parece, no entanto, assumido por Spinoza e Kant. Tal encontro entre essas duas sumidades merece ao menos um exame. “O homem livre nunca age como enganador”, escreve Spinoza, “mas sempre de boa-fé.” De fato, o homem livre é aquele que só se submete à razão, que é universal: se ela autorizasse a mentira, ela sempre a autorizaria, e qualquer sociedade humana seria impossível. Muito bem. Mas se for, para tal indivíduo, sob risco de sua própria vida? Isso não altera nada, responde tranqüilamente Spinoza, pois a razão, sendo a mesma em todos, não poderia depender dos interesses, mesmo que vitais, de cada um. Daí este escólio surpreendente: Perguntaram se, caso um homem pudesse se livrar pela má-fé de um perigo de morte iminente, a regra da conservação do ser próprio não mandaria nitidamente a má-fé. Eu respondo também: se a razão manda isso, ela o manda pois a todos os homens, assim a razão manda de uma maneira geral a todos os homens que só concluam entre si, para a união de suas forças e o estabelecimento dos direitos comuns, acordos enganadores, isto é, manda que não tenham na realidade direitos comuns, o que é absurdo. Nunca entendi, em todo caso nunca de uma maneira que me satisfizesse completamente, como esse escólio podia se harmonizar com as proposições 20 a 25 da mesma parte da Ética, onde o esforço para se conservar é, ao contrário, “a primeira e única origem da virtude”, ao mesmo tempo em que sua medida e seu fim. Noto todavia que Spinoza não proíbe em absoluto a mentira, mas constata que a razão, que é única a ser livre, não poderia ordená-la. As duas coisas são diferentes, dado que a razão não é tudo, no homem, nem mesmo o essencial (o essencial é o desejo, o essencial é o amor), e que nenhum homem é absolutamente livre ou absolutamente razoável, nem deve sê-lo, nem mesmo querer sê-lo. O homem que age como enganador nunca o faz, precisa a demonstração, “como homem livre”. Que seja. E a mentira e a esperteza nem por isso seriam, em si mesmas, virtudes. Que seja, também. Mas seria, com freqüência, irrazoável só ouvir a razão, seria condenável só amar a virtude, seria fatal para a liberdade só querer agir enquanto livre. A boa-fé é uma virtude, mas a prudência também, e a justiça, e a caridade. Se for necessário mentir para sobreviver, ou para resistir à barbárie, ou para salvar a quem se ama, a quem se deve amar, não há a menor dúvida, para mim, de que se deva mentir, quando não há outro meio, ou quando todos os outros meios seriam piores, e Spinoza, parece-me, admitiria isso. A razão, claro, não poderia mandá-lo, já que ela é universal, o que a mentira não poderia ser: se todo o mundo mentisse, para que mentir, pois ninguém teria crédito, e para que falar? Mas essa razão será apenas abstrata, se o desejo não se apoderar dela, se não a fizer viver. Ora, o desejo é sempre singular, sempre concreto, e por isso aliás pode-se mentir, como reconhece o Tratado político, sem violar o direito natural nem (ou isto é) o interesse de cada um, ou mesmo de todos. A vontade, não a razão, comanda; o desejo, não a verdade, dita sua lei. O desejo de verdade, que é a essência da boa-fé, permanece nisso submetido à verdade do desejo, que é a essência do homem: ser fiel ao verdadeiro não poderia dispensar ser fiel à alegria, ao amor, à compaixão, enfim, como diz Spinoza, à justiça e à caridade, que são toda a lei e a verdadeira fidelidade. Ser fiel ao verdadeiro, em primeiro lugar, é também ser fiel à verdade em si do desejo: se é necessário enganar o outro ou se trair, enganar o mau ou abandonar o fraco, faltar com a palavra ou com o amor, a fidelidade ao verdadeiro (a esse verdadeiro que somos, que carregamos, que amamos) pode às vezes impor a mentira. É por isso que, mesmo nesse estranho escólio da proposição 72, Spinoza, tal como o compreendo, permanece diferente de Kant. A boa-fé é uma virtude, é claro, o que a mentira não poderia ser, mas isso não quer dizer que toda mentira seja condenável nem, a fortiriori, que devamos sempre nos proibir de mentir. Nenhuma mentira é livre, por certo; mas quem pode ser sempre livre? E como o seríamos, diante dos maus, dos ignorantes, dos fanáticos, quando eles são os mais fortes, quando a sinceridade para com eles seria cúmplice ou suicida? Caute… A mentira nunca é uma virtude, mas a tolice também não, mas o suicídio também não. Simplesmente, às vezes é preciso se contentar com o mal menor, e a mentira pode sê-lo. Kant vai muito mais longe e muito mais claramente. A mentira não apenas nunca é uma virtude, como é sempre uma falta, sempre um crime, sempre uma indignidade. É que a veracidade, que é seu contrário, é “um dever absoluto que vale em todas as circunstâncias” e que, sendo “totalmente incondicionado”, não poderia admitir a menor exceção “a uma regra que, por sua própria essência, não tolera nenhuma”. Isso equivale a pensar, objetava Benjamin Constant, que mesmo “para assassinos que lhe perguntassem se seu amigo, que eles perseguem, não está refugiado em sua casa, a mentira seria um crime”. Mas Kant não se deixa impressionar por tão pouco: seria um crime, de fato, pois a humanidade se situa aí, na palavra verdadeira, pois a veracidade é “um mandamento da razão, que é sagrado, absolutamente imperativo, que não pode ser limitado por nenhuma conveniência”, nem mesmo a conservação da vida de outrem ou da própria. A intenção aqui não entra em jogo. Não há mentira piedosa, ou antes, mesmo piedosa, mesmo generosa, toda mentira é condenável: “Sua causa pode ser a leviandade, ou mesmo a bondade, e mesmo mentindo podemos nos propor uma finalidade boa; mas por sua simples forma a maneira de tender a esse fim é um crime do homem para com sua própria pessoa e uma indignidade que o torna desprezível a seus próprios olhos.” Ainda que assim fosse, é dar muita importância, parece-me, à sua própria pessoa. O que é essa virtude tão preocupada consigo, com sua integridade, com sua dignidade, que, para se preservar, está disposta a entregar um inocente a assassinos? O que é esse dever sem prudência, sem compaixão, sem caridade? A mentira é uma falta? Sem dúvida. Mas a aridez de coração também, e mais grave! A veracidade é um dever? Admitamos. Mas a assistência a uma pessoa em perigo é outro, e mais premente. Ai de quem prefere sua consciência à do próximo! Já chocante no século XVIII, como mostra a objeção de Benjamin Constant, a posição de Kant tornou-se, no meado do nosso, propriamente insustentável. Porque a barbárie adquiriu, neste triste século XX, outra dimensão, perto da qual qualquer rigorismo é ilusório, quando só ocupa a consciência, ou odioso, quando equivale a servir efetivamente aos carrascos. Você abriga um judeu ou um resistente em seu sótão. A Gestapo, que o procura, interroga você. Você irá dizer-lhes a verdade? Irá se recusar a responder (o que daria na mesma)? Claro que não! Qualquer homem honrado, qualquer homem de coração e mesmo qualquer homem de dever irá sentir-se não apenas autorizado mas obrigado a mentir. É o que digo: a mentir. Porque a mentira não deixará de ser o que ela é, uma declaração intencionalmente falsa. “Mentir aos policiais alemães que nos perguntam se escondemos um patriota em casa”, escreve Jankélévitch, “não é mentir, é dizer a verdade; responder: não há ninguém, quando há, é [nessa situação] o mais sagrado dos deveres.” Concordo obviamente com a segunda proposição; mas como aceitar a primeira sem renunciar a pensar o problema que pretendemos resolver, sem se impedir com isso, por dissolvê-lo, de o formular? Mentir aos policiais alemães é, evidentemente, mentir, e isso prova apenas (pois essa mentira, no exemplo considerado, é seguramente virtuosa) que a veracidade não é um dever absoluto, não obstante o que Kant tenha pensado, não é um dever universal, e talvez não haja deveres absolutos, universais, incondicionais (portanto, nenhum dever, no sentido kantiano), mas apenas valores, mais ou menos elevados, mas apenas virtudes, mais ou menos preciosas, urgentes ou necessárias. A veracidade é uma, repitamos. Mas menos importante do que a justiça, do que a compaixão, do que a generosidade, menos importante do que o amor, evidentemente, ou antes, menos importante, como amor à verdade, do que a caridade como amor ao próximo. De resto, o próximo também é verdadeiro, e essa verdade em carne e osso, essa vontade sofredora, é mais importante – ainda mais importante! – do que a veracidade de nossas palavras. Fidelidade ao verdadeiro antes de tudo, mas mais ainda à verdade dos sentimentos do que a de nossas declarações, mais à verdade da dor do que à da palavra. Transformando a boa-fé num absoluto a perdemos, pois ela deixa de ser boa, pois torna-se apenas veracidade ressecada, mortífera, odiável. Já não é boa-fé, é veridismo; já não é virtude, é fanatismo. Fanatismo teórico, desencarnado, abstrato: fanatismo de filósofo, que gosta loucamente da verdade. Mas nenhum fanatismo é virtuoso. Tomemos outro exemplo, menos extremo. Devemos dizer a verdade ao moribundo? Sim, sempre, responderia Kant, pelo menos se o moribundo perguntar, pois a veracidade é um dever absoluto. Não, nunca, responde Jankélévitch, pois seria lhe infligir sem razão “a tortura do desespero”. O problema me parece mais complicado. Dizer a verdade ao moribundo, quando ele pede, quando ele pode suportá-la, pode ser também ajudá-lo a morrer na lucidez (mentir ao moribundo não é lhe roubar sua morte, como dizia Rilke?), na paz, na dignidade, a morrer na verdade, como ele viveu, como quis viver, e não na ilusão ou na negação. “Quem diz ao moribundo que ele vai morrer mente”, escreve Jankélévitch; “primeiro ao pé da letra, pois ele não o sabe, porque só Deus sabe, porque nenhum homem tem direito de dizer a outro homem que este vai morrer”, em seguida “quanto ao espírito, porque lhe faz mal”. Mas, quanto à letra, é confundir boa-fé com certeza, sinceridade com onisciência: o que impede o médico ou os próximos de dizerem sinceramente o que sabem ou crêem, inclusive os limites, nesses domínios, do saber e da crença? E, quanto ao espírito, é dar muito pouco valor à verdade e muito pouca estima ao espírito. Colocar a esperança acima da verdade, acima da lucidez, acima da coragem é por o espírito alto demais. Que vale a esperança, se é à custa de mentira, à custa de ilusão? “Os homens pobres e sós não devem ser afligidos”, diz ainda Jankélévitch, “isso é mais importante que tudo, mesmo que a verdade.” Sim, se a aflição for atroz, se o homem só e pobre não puder suportá-la, se apenas a ilusão o fizer viver. Mas é sempre assim? E de que adianta então a filosofia, de que adianta a própria sinceridade, se ambas devem se deter ao aproximar-se da morte, se a verdade só vale quando nos tranqüiliza, quando não implica o risco de nos afligir? Desconfio dos que dizem nunca, nesses domínios, tanto quanto dos que dizem sempre. Que se possa mentir por amor ou por compaixão, e que se deva fazê-lo às vezes, estou de acordo, é claro. O que há de mais imbecil, e de mais covarde, do que impormos aos outros uma coragem de que não temos certeza de ser capazes? Sim: cabe ao moribundo primeiro decidir, quando pode, da importância que dá à verdade, e ninguém está capacitado, quando ele não pode, a decidir em seu lugar. Doçura, pois, em vez de violência: a compaixão prevalece aqui, e deve prevalecer, sobre a veracidade. Mas a verdade ainda assim continua sendo um valor, do qual não poderíamos privar o outro, sobretudo se ele a pedir, sem razões muito fortes e precatados. O conforto não é tudo. O bem-estar não é tudo. Que seja necessário suprimir o sofrimento físico, na medida do possível, está claro, e nossos médicos deveriam ocupar-se mais disso. Mas e o sofrimento moral, e a angústia, e o medo, quando fazem parte da própria vida? “Morreu sem perceber”, dizem às vezes. Será mesmo uma vitória da medicina? Pois, afinal de contas, ele acabou morrendo, e a tarefa dos médicos, que eu saiba, é nos curar quando podem, não nos esconder que não podem. “Se eu lhe disser a verdade, ele vai se matar”, disse-me um médico. Mas o suicídio nem sempre é uma doença (também é um direito, do qual, assim, privamos o doente); a depressão, sim, é uma, doença da qual se trata. Os médicos existem para tratar, não para decidir no lugar de seu paciente se sua vida – e sua morte! – vale ou não a pena ser vivida. Cuidado, amigos médicos, com o paternalismo: vocês têm a seu encargo a saúde de seus pacientes, mas não sua felicidade, mas não sua serenidade. Um moribundo não tem o direito de ser infeliz? Não tem o direito de ficar angustiado? O que é então, nessa infelicidade, nessa angústia, que os assusta tanto assim? Isso é dito, ou deve ser dito, como sempre, sob reserva da compaixão, da doçura, da ternura… Mais vale mentir do que torturar, mais vale mentir do que apavorar. A verdade não toma o lugar de tudo. Mas nenhuma virtude tampouco poderia tomar o lugar da verdade, nem valer absolutamente sem ela. A morte mais bela, moralmente, espiritualmente, humanamente, é a mais lúcida, a mais serenamente lúcida, e é também nosso dever acompanhar os moribundos, quando for preciso, quando eles puderem, até essa verdade derradeira. Quem ousaria mentir, em seus derradeiros momentos, a Cristo ou a Buda, a Sócrates ou a Epicuro, a Spinoza ou a Simone Weil? Dir-se-á que essas personagens não pululam nas ruas, nem nos quartos de hospital. Sem dúvida. Não obstante é necessário nos ajudarem a nos aproximarmos delas, quando pudermos, mesmo um pouquinho, em vez de nos vedarem de antemão esse gosto, mesmo que amargo, ou essa possibilidade, mesmo que dolorosa. A veracidade, mesmo que no leito de morte, continua pois a valer. Não sozinha, repitamos: a compaixão também vale, o amor também vale, e mais. Brandir a verdade a quem não a pediu, a quem não a pode suportar, a quem será dilacerado ou esmagado por ela, não é boa-fé: é brutalidade, é insensibilidade, é violência. Portanto, deve-se dizer a verdade, ou o mais de verdade possível, pois a verdade é um valor, pois a sinceridade é uma virtude; mas não sempre, mas não a qualquer um, mas não a qualquer preço, mas não de qualquer maneira! É preciso dizer a verdade tanto quanto possível, ou tanto quanto devido, digamos que tanto quanto possível fazer sem faltar com isso a alguma virtude mais elevada ou mais urgente. É aí que voltamos a encontrar Jankélévitch: “Ai dos que põem acima do amor a verdade criminosa da delação! Ai dos brutos que dizem sempre a verdade! Ai dos que nunca mentiram!” No entanto, isso só vale em relação a outrem: porque é legítimo preferir o outro, principalmente quando ele sofre, principalmente quando ele é fraco, à sua própria veracidade. É aí que a boa-fé vai mais longe que a sinceridade, e se impõe, ou é válida, universalmente. Às vezes, é legítimo, inclusive moralmente, mentir a outrem em vez de lhe dizer a verdade. Mas a má-fé não poderia, em relação a si mesmo, valer mais que a boa, pois seria colocar-se acima da verdade, e seu conforto ou sua consciência tranqüila acima de seu espírito. Seria pecar contra o verdadeiro e contra si. A todo pecado misericórdia, sem dúvida: cada um faz o que pode, e a vida é difícil demais, cruel demais, para que se possa, nesses domínios, condenar quem quer que seja. Quem sabe, diante do pior, o que irá fazer, e a quantidade de verdade, então, que será capaz de suportar? Misericórdia, misericórdia para todos! Isso não significa, porém, que tudo se equivale, nem que a má-fé em relação a si mesmo pode ser considerada moralmente neutra ou indiferente. Se é legítimo mentir ao mau, por exemplo quando nossa vida está em jogo, não é que nos coloquemos então acima da verdade, pois isso não nos impede em nada de amá-la, de respeitá-la, de nos submetermos a ela, pelo menos interiormente. É no próprio nome do que acreditamos verdadeiro que mentimos ao assassino ou ao bárbaro, e são mentiras, nesse sentido, de boa-fé. É aí que cumpre distinguir a sinceridade, que se dirige a outrem e autoriza toda espécie de exceções (é boa-fé transitiva e condicional), da boa-fé reflexiva, que só se dirige a si e que, por conseguinte, é universalmente válida. Que é necessário mentir às vezes a outrem, por prudência ou compaixão, já vimos e não vou voltar a isso. Mas o que poderia justificar mentirmos a nós mesmos? A prudência? Seria colocar nosso bem-estar acima da lucidez, nosso ego acima de nosso espírito. A compaixão? Seria carecer de coragem. O amor? Mas, sem a boa-fé, não passaria de amor-próprio e narcisismo. Jean-Paul Sartre, numa problemática que não é a minha, mostrou que a má-fé, como “mentira a si”, trai (isto é, indissoluvelmente, exprime e nega) uma dimensão essencial de qualquer consciência humana, que lhe impede de coincidir absolutamente consigo, como uma coisa ou um fato. Acreditar-se absolutamente garçom de bar, ou professor de filosofia, ou triste ou alegre, assim como uma mesa é uma mesa, e mesmo acreditar-se absolutamente sincero, assim como se é louro ou moreno, é ser de má-fé, sempre, pois é esquecer que se deve ser o que se é (em outras palavras, não se é já, nem definitivamente), pois é negar sua própria angústia, seu próprio nada, sua própria liberdade. Por isso a má-fé é, para toda consciência, “um risco permanente”. Mas é um risco que precisamos enfrentar, e que não poderíamos sem má-fé transformar em fatalidade ou em desculpa. A má-fé não é um ser, nem uma coisa, nem um destino, mas a coisificação do que somos, do que cremos ser, do que queremos ser, sob a forma, necessariamente artificial, do em-si-por-si, que seria Deus e que não é nada. O contrário da má-fé também não é um ser (crer que se é de boa-fé é se mentir), nem uma coisa, nem mesmo uma qualidade: é um esforço, é uma exigência, é uma virtude. Assim é a autenticidade, em Sartre, assim é a boa-fé, em qualquer um, quando não é coincidência em si de uma consciência satisfeita ou petrificada, mas subtração perpétua à mentira, ao espírito de seriedade, a todos os papéis que representamos ou que somos, em suma, à má-fé, e a si. A pensá-la em sua maior generalidade, a boa-fé nada mais é que o amor à verdade. É por isso que ela é a virtude filosófica por excelência, não, claro, no sentido em que seria reservada a qualquer um, mas em que será filósofo, no sentido mais forte e mais comum do termo, quem colocar a verdade, pelo menos no que lhe diz respeito, acima de tudo, honra ou poder, felicidade ou sistema, e até mesmo acima da virtude, até mesmo acima do amor. Este prefere saber-se mau a fingir-se bom, e olhar de frente o desamor, quando ele se produzir, ou seu próprio egoísmo, quando ele reinar (quase sempre!), a se persuadir falsamente de ser amante ou generoso. No entanto, sabe que a verdade sem a caridade não é Deus. Mas também sabe, ou crê saber, que a caridade sem a verdade não passa de uma mentira entre outras, e não é caridade. Spinoza chamava amor intelectual a Deus essa alegria de conhecer, qualquer que seja, aliás, seu objeto (“quanto mais conhecemos as coisas singulares, mais conhecemos Deus”), já que tudo é em Deus, e já que Deus é tudo. Era exagerar, sem dúvida, se nenhuma verdade é Deus, nem sua soma, se nenhum Deus é verdadeiro. Mas era indicar, no entanto, o essencial: que o amor à verdade é mais importante do que a religião, que a lucidez é mais preciosa do que a esperança, que a boa-fé vale mais e é melhor que a fé. É também o espírito da psicanálise (“a verdade, e ainda a verdade”), sem o qual ela não passaria de uma sofística como outra qualquer, o que ela é com freqüência e a que não escapa, a não ser pelo “amor à verdade”, como dizia Freud, “o que deve excluir toda e qualquer ilusão, todo e qualquer logro”. É o espírito de nosso tempo, quando ainda tem espírito, quando não o perdeu ao mesmo tempo em que a fé. É o espírito eterno e fugaz, que “escarnece de tudo”, como dizia Alain, e de si mesmo. Da verdade? Isso lhe acontece, mas também é uma maneira de amar. Venerá-la, fazer dela um ídolo, fazer dela até um deus, seria mentir. Todas as verdades se equivalem, e não valem nada: não é porque a verdade é boa que devemos amá-la, diria Spinoza, é porque a amamos que ela nos parece boa, e o é de fato para os que a amam. A verdade não é Deus: ela só vale para os que a amam, e por eles, ela só vale para os verídicos, que a amam sem adorá-la, que se submetem a ela sem por ela se deixarem enganar. O amor é, pois, primeiro? Sim, mas apenas se verdadeiro: primeiro no valor, pois, e segundo no ser. É o espírito do espírito, que prefere a sinceridade à mentira, o conhecimento à ilusão, e o riso à seriedade. Por isso a boa-fé leva ao humor, assim como a má-fé, à ironia. /André Comte-Sponville