
Meu Deus, concedei-me tornar-me nada. Pode-se ver nisso um triunfo da pulsão de morte, que se relacionará sem dificuldade ao que há de possivelmente patológico (desta vez no sentido comum do termo) na personalidade de Simone Weil. Tudo bem. Mas, admitido isso, falta saber o que fizemos dessa pulsão de morte ou, por assim dizer, da agressividade. Pois o que Freud mostrou ou sugeriu, e que esquecemos depressa demais, é que a pulsão de morte triunfa necessariamente, pois a própria vida lhe é subordinada, e em todo caso não conseguiríamos nos desvencilhar dela pura e simplesmente. Que desejo não é também desejo de morte? Que vida não é violência? Muitos chamarão de amor apenas a negação desse desejo, dessa violência, dessa agressividade, que é viver. Mas Simone Weil pratica pouco a negação. O que vemos nela é, antes, a introversão da morte, da violência, da negatividade, ou, para dizer com palavras que não são as dela, a retroversão da pulsão de morte no sentido do eu, o que liberta a pulsão de vida e a torna disponível para outrem. O desejo permanece (pois “somos desejo!”), a alegria permanece (pois “a alegria e o sentimento de realidade são idênticos”), o amor permanece (pois “a crença na existência de outros seres humanos como tais é amor”), mas libertados do egoísmo, da esperança, da possessividade – como que libertados de nós mesmos, da “prisão do eu”, e mais leves, mais alegres, mais luminosos: já que o ego não é mais um obstáculo ao real ou à alegria, já que cessou de absorver nele todo o amor ou toda a atenção disponíveis. Essa leveza, essa alegria, essa luz, são as da sabedoria, são as da santidade, e é o que as reúne. Não é seguro que Simone Weil as tenha alcançado – aliás, ela nunca o pretendeu. Mas nos ajuda a pensá-las. “O pecado em mim diz ‘eu’”, ela escreve. E mais adiante: “Devo amar ser nada. Como seria horrível se eu fosse alguma coisa. Amar meu nada, amar ser nada.” Ressentimento, ideal ascético, ódio de si? Pode-se dizer assim. Isso pode até existir, e existe sem dúvida. Mas, se fosse o único conteúdo desse amor, Simone Weil nos comoveria a esse ponto? Nos esclareceria a esse ponto? Talvez haja também outra coisa, que seria como que uma inversão das pulsões vitais e mortíferas ou, para dizer melhor (pois essas pulsões, ao que tudo indica, são uma só coisa), como que uma permutação de seus objetos nos dois pólos de uma mesma ambivalência. Pôr sua vida em Deus, explica Simone Weil, é “pôr sua vida no que não se pode de modo algum tocar”. E acrescenta: “É impossível. É uma morte. É disso que precisamos.” Eros e Tanatos… Na maioria das pessoas, ou em todas e na maior parte do tempo, Eros se concentra no eu (e só se projeta nos outros enquanto estes podem nos faltar ou nos regozijar: enquanto podem nos servir), ao passo que Tanatos se concentra de preferência nos outros: amamo-nos mais facilmente do que aos outros, detestamos os outros mais facilmente do que a nós mesmos. O que Simone Weil chama de descriação e que, segundo ela, se exprime na caridade poderia talvez ser pensado (nos conceitos de Freud, se não nos dela) como uma inversão ou um cruzamento dessas duas forças ou de seus objetos, cessando o eu de monopolizar a pulsão de vida, cessando de absorver a energia positiva e concentrando em si, ao contrário, toda a pulsão de morte ou toda a energia negativa. Há lugar aqui, parece-me, para uma leitura não-religiosa de Simone Weil, que poderia integrar numa teoria materialista (por exemplo, de inspiração freudiana) algo dessa descriação ou, como ela também diz, dessa “reviravolta do positivo e do negativo”. Assim também, devemos morrer para liberar a energia atada, para possuir uma energia livre capaz de amoldar-se à verdadeira relação das coisas. A verdadeira relação das coisas? Sua igualdade absoluta, pois nenhuma vale sem o amor, pois todas valem pelo amor. Pelo que a caridade nada mais é que a justiça (“o Evangelho”, observa Simone Weil, “não faz nenhuma distinção entre o amor ao próximo e a justiça”), de modo que, antes, ela só se distingue da justiça pelo amor (podemos ser justos sem amar, não podemos amar universalmente sem ser justos), pelo que ela é como que um amor libertado da injustiça do desejo (erôs) e da amizade (philia), como um amor universal, pois, sem preferência nem escolha, como uma dileção sem predileção, como um amor sem limites e mesmo sem justificativas egoístas ou afetivas. Assim, a caridade não poderia ser reduzida à amizade, que sempre supõe uma escolha, uma preferência, uma relação privilegiada, ao passo que a caridade, ao contrário, pretende-se universal e refere-se especialmente aos inimigos ou aos indiferentes (já que, para os outros a amizade pode bastar). Como observa Ferdinand Prat, “não se diria em latim, nem com maior razão em grego: ‘Amate (phileite) inimico vestros’, seria pedir o impossível; mas sempre: ‘Diligete (agapate) inimico vestros’”. Como poderíamos ser amigos de nossos inimigos? Como poderíamos nos regozijar com sua existência, quando ela nos fere, quando ela nos mata? Portanto, temos de amá-los de outro modo. Quanto a erôs, não se encontra nem ele nem qualquer palavra da mesma raiz, em nenhum texto do Novo Testamento. Como, aliás, poderíamos sentir falta de nossos inimigos? Como poderíamos esperar deles um bem, um prazer, uma felicidade? Isso confirma que o amor agápico é bem singular, precisamente pelo fato de se pretender universal. Estar enamorado de seu próximo, em outras palavras, de todo o mundo e de qualquer um, a fortiriori estar enamorado de seus inimigos seria um absurdo evidente. E não é um amigo, observava Aristóteles, quem é amigo de todos. A caridade é, pois, outra coisa: “É o amor transfigurado em virtude”, como diz Jankélévitch, ou antes (se a amizade, como creio, já pode ser uma virtude), é o amor “tornado permanente e crônico, estendido à universalidade dos homens e à totalidade da pessoa”, que também pode se referir, é claro, àquele de quem somos amante ou amigo, mas que se dirige a todos os humanos, bons ou maus, amigos ou inimigos, o que de resto não nos impede de preferir aqueles (quanto à amizade) nem de combater estes (se pudermos combatê-los sem ódio: se o ódio não for a única motivação do combate), mas que introduz nas relações humanas aquele horizonte de universalidade que a compaixão ou a justiça já sugeriam, por certo, mas sobretudo de maneira negativa ou formal, e que a caridade, na medida do possível, vem encher de um conteúdo positivo e concreto. É a aceitação alegre do outro, e de qualquer outro. Tal como ele é e quem quer que seja. Enquanto é universal, a caridade refere-se também ao eu (quando Pascal escreve que é necessário se odiar, falta-lhe evidentemente caridade por si mesmo: que sentido teria amar o próximo como a si mesmo, se não se devesse amar a si mesmo?), mas sem privilégio algum. “Amar um estranho como a si mesmo”, escreve com razão Simone Weil, “implica uma contrapartida: amar a si mesmo como a um estranho.” É aí que voltamos a encontrar Pascal: “Numa palavra, o eu tem duas qualidades. É injusto em si por se fazer o centro de tudo. É incômodo aos outros por querer subjugá-los, porque cada eu é inimigo e gostaria de ser tirano de todos os outros.” A caridade é o antídoto dessa tirania e dessa injustiça, que ela combate por meio de um descentramento (ou, diria Simone Weil, de uma descriação) do eu. O eu só é odiável porque não sabe amar – e se amar – como deveria. Porque ama apenas a si, ou para si (por cobiça ou concupiscência). Por ser egoísta. Por ser injusto. Por ser tirânico. Por absorver em si – como se fosse um buraco negro espiritual – toda alegria, todo amor, toda luz. A caridade, embora não seja incompatível com o amor a si (que ela inclui, ao contrário, purificando-o: “amar a si mesmo como a um estranho”), opõe-se evidentemente a esse egoísmo, a essa injustiça – a essa escravidão tirânica do eu. Talvez seja isso o que melhor a define: é um amor libertado do ego e que liberta dele. Fosse ela impossível de se viver, ainda assim necessária a se pensar: para saber o que nos falta ou o que faz falta em nós. Porque esse amor é pelo menos objeto de desejo, e essa falta em nós basta para fazer nascer seu valor ou para fazê-la nascer como valor. Pelo que o amor seria efetivamente “essa sede que inventa as fontes”, e a própria fonte: como uma falta que libertasse de toda falta, como uma potência que libertasse da potência. Porque o amor nos falta, porque o amor nos regozija: agapé também é um objeto ou um horizonte para erôs e philia, que proíbe que um e outro permaneça prisioneiro de si, satisfeito de si, que sempre os obriga – e isso Platão percebeu – a ir além de todo objeto possível, de toda posse possível, de toda preferência possível, até essa zona do espírito ou do ser em que nada mais falta e em que tudo nos regozija, zona a que Platão chamava o Bem, a que outros chamaram Deus, de dois mil anos para cá, e que talvez não seja nada mais do que o amor que nos chama na exata medida – mas apenas nessa medida – em que o chamamos, em que o amamos, em que às vezes vivemos, se não sua presença, que nunca é verificada, pelo menos sua ausência, pelo menos sua exigência, pelo menos seu mandamento. O amor não pode ser comandado, dizia eu, pois comanda. Mas comanda efetivamente, e é por isso que ele é toda a lei, como são Paulo havia visto, e mais precioso até que a ciência, a fé ou a esperança, que só valem por ele, quando valem, e para ele. Cabe aqui citar o mais belo texto, talvez, que já foi escrito sobre a caridade, da qual este longo capítulo, no fundo, pretendia apenas ser uma justificação, mas sem Deus, e tanto pior para aqueles que consideram isso impossível ou contraditório: Ainda que eu fale a língua dos homens e dos anjos, se não tiver caridade, não serei mais que bronze que soa ou címbalo que retine. Ainda que eu tenha o dom da profecia e conheça todos os mistérios e toda a ciência; ainda que eu tenha a plenitude da fé, uma fé de transportar montanhas, se não tiver caridade, nada serei. E, ainda que eu distribua todos os meus bens em esmolas, ainda que entregue o meu próprio corpo às chamas,
A caridade é paciente, a caridade é serviçal; ela não é invejosa; não se gaba, não se infla, ela não se conduz inconvenientemente, não procura os seus interesses, não se exaspera, não leva em conta o mal; não se alegra com a injustiça, mas põe sua alegria na verdade. A caridade não passa nunca. As profecias? Elas desaparecerão. As línguas? Elas se calarão. A ciência? Ela desaparecerá. Porque parcial é nossa ciência, também parcial nossa profecia. Quando, porém, vier o que é perfeito, o que é parcial desaparecerá. Quando eu era menino, falava como menino, sentia como menino, pensava como menino, raciocinava como menino; Essas “coisas” são o que tradicionalmente se chama de três virtudes teologais (porque teriam Deus mesmo por objeto). Duas delas, a fé e a esperança, estão ausentes deste tratado, porque me pareceram, de fato, não ter outro objeto plausível que não Deus, em que não creio. Dessas duas virtudes, aliás, podemos prescindir: basta a coragem, diante do futuro ou do perigo, assim como a boa-fé, diante da verdade ou do desconhecido. Mas como poderíamos prescindir da caridade (ao menos como idéia ou como ideal)? E quem ousaria pretender que ela só pode ter Deus como objeto, quando todos sentem (e quando Paulo escreve explicitamente) o contrário, a saber, que ela só pode existir por inteiro no amor ao próximo? De resto, santo Agostinho e santo Tomás, comentando o hino à caridade, bem mostraram que, das três virtudes teologais, a caridade não era apenas “a maior das três”, como dizia são Paulo, mas também a única a ter um sentido em Deus ou, como dizem, no Reino. A fé passará (como crer em Deus quando se é Deus?), a esperança passará (no Reino, não haverá mais nada a esperar), e é por isso que se diz que apenas a caridade “não passará”: no Reino só haverá amor, sem esperança e sem fé! Aí estamos. A esperança e a fé nos deixaram: nada mais há senão a falta, nada mais há senão a alegria, nada mais há senão a caridade. Isso não é, necessariamente, trair o espírito de Cristo, nem renunciar em tudo a segui-lo. Cristo, observa santo Tomás, não tinha “nem a fé nem a esperança”, no entanto houve nele “uma caridade perfeita”. Que essa perfeição não nos é acessível, está claro. Mas será isso uma razão para renunciarmos ao pouco de amor puro, gratuito ou desinteressado – ao pouco de caridade – de que talvez sejamos capazes? Digo “talvez” porque nada garante que esse amor seja ao menos possível. Mas assim acontece, mostrava Kant, com toda virtude, e isso portanto não refuta nem a caridade nem o dever. Um tal amor está a nosso alcance? Podemos vivê-lo? Podemos nos aproximar dele? Não podemos sabê-lo sem prová-lo. Talvez seja “esse amor que falta a todo amor”, como diz Bobin, ao qual no entanto nada falta, e que por isso nos falta, e nos atrai. Mesmo ausente, ele nos ilumina: a ausência do amor ainda é um amor. “Amar”, dizia Alain, “é encontrar sua riqueza fora de si.” É por isso que o amor é pobre, sempre, e a única riqueza. Mas há várias maneiras de ser pobre no amor, pelo amor, ou de ser rico, antes, de sua pobreza: pela falta, que é paixão, pela alegria recebida ou partilhada, que é amizade, enfim pela alegria dada, e dada em pura perda, pela alegria dada e abandonada, que é caridade. Haveria, pois, para resumir, para simplificar, três maneiras de amar, ou três tipos de amor, ou três gradações no amor: a carência (erôs), o regozijo (philia), a caridade (agapé). Pode ser que esta última seja, em verdade, apenas um halo de doçura, de compaixão e de justiça, que venha temperar a violência da falta ou do regozijo, que venha moderar ou aprofundar o que nossos outros amores possam ter de demasiado brutal ou de demasiado pleno. Há um amor que é como uma fome, outro que ressoa como uma gargalhada. A caridade mais parecia um sorriso, quando não, o que lhe sucede, uma vontade de chorar. Não vejo que isso a condene. Nossos risos são ruins mais freqüentemente que nossas lágrimas. Compaixão? Pode ser que seja de fato esse o conteúdo principal da caridade, seu afeto mais efetivo, ou mesmo seu verdadeiro nome. Em todo caso é o nome que lhe dá o Oriente budista, que seria nisso, como sugeri, mais lúcido ou mais realista do que o Ocidente cristão. Pode ser também que a amizade – mas uma amizade purificada, como que rarefeita à proporção de sua extensão – seja o único amor generoso de que sejamos capazes: é sem dúvida o que um epicurista teria objetado a são Paulo ou aos primeiros cristãos. A caridade, se ela é possível, se reconheceria no entanto pelo fato (no que ela superaria a compaixão) de não ter necessidade do sofrimento do outro para amá-lo, de não estar “a reboque da felicidade”, como dizia Jankélévitch, de ser como que uma compaixão primeira e não-reativa; do mesmo modo que se distinguiria da simples amizade, e a superaria, pelo fato de não ter necessidade de ser amada para amar, e nem poder sê-lo, pelo fato de nada ter a ver com a reciprocidade ou o interesse, de ser como uma amizade primeira e não-reativa: seria como que uma compaixão libertada do sofrimento, e como que uma amizade, repitamos, libertada do ego. Sua ausência, mesmo que seja insolúvel, é o que torna as virtudes necessárias: o amor (mas o amor não egoísta) liberta da lei, quando existe, e a inscreve no fundo dos corações, quando falta. Que ele falte o mais das vezes, e sempre talvez, é o que justifica este tratado: para que falar de moral, se não faltasse o amor? “A melhor e mais curta definição da virtude”, dizia santo Agostinho, “é esta: a ordem do amor.” Mas o amor, na maioria das vezes, só brilha por sua ausência: daí o fulgor das virtudes e a obscuridade de nossas vidas. Fulgor secundário, obscuridade essencial, mas não total. As virtudes, quase todas, só se justificam por esta falta em nós do amor, e portanto se justificam. Elas não poderiam, porém, preencher esse vazio que as ilumina: aquilo mesmo que as torna necessárias impede que as creiamos suficientes. Pelo que o amor nos destina à moral e dela nos liberta. Pelo que a moral nos destina ao amor, ainda que ele esteja ausente, e a ele se submete. /André Comte-Sponville