O sexo e o cérebro não são músculos, nem podem ser. Disso decorrem várias conseqüências importantes, das quais esta não é a menor: não amamos o que queremos, mas o que desejamos, mas o que amamos e que não escolhemos. Como poderíamos escolher nossos desejos ou nossos amores, se só podemos escolher – ainda que entre vários desejos diferentes, entre vários amores diferentes – em função deles? O amor não se comanda e não poderia, em conseqüência, ser um dever. Sua presença num tratado das virtudes torna-se, por conseguinte, problemática? Talvez. Mas devemos dizer também que virtude e dever são duas coisas diferentes (o dever é uma coerção, a virtude, uma liberdade), ambas necessárias, claro, solidárias uma da outra, evidentemente, mas antes complementares, até mesmo simétricas, do que semelhantes ou confundidas. Isso é verdade, parece-me, para qualquer virtude: quanto mais somos generosos, por exemplo, menos a beneficência aparece como dever, isto é, como uma coerção. Mas é verdade a fortiriori para o amor. “O que fazemos por amor sempre se consuma além do bem e do mal”, dizia Nietzsche. Eu não iria tão longe, já que o amor é o próprio bem. Mas além do dever e do proibido, sim, quase sempre, e tanto melhor! O dever é uma coerção (um “jugo”, diz Kant), o dever é uma tristeza, ao passo que o amor é uma espontaneidade alegre. “O que fazemos por coerção”, escreve Kant, “não fazemos por amor.” Isso se inverte: o que fazemos por amor não fazemos por coerção, nem, portanto, por dever. Todos sabemos disso, e sabemos também que algumas de nossas experiências mais evidentemente éticas não têm, por isso, nada a ver com a moral, não porque a contradizem, é claro, mas porque não precisam de suas obrigações. Que mãe alimenta o filho por dever? E há expressão mais atroz do que dever conjugal? Quando o amor existe, quando o desejo existe, para que o dever? Que, no entanto, existe uma virtude conjugal, que existe uma virtude maternal, e no próprio prazer, no próprio amor, não há a menor dúvida! Pode-se dar o peito, pode-se dar a si mesma, pode-se amar, pode-se acariciar, com mais ou menos generosidade, mais ou menos doçura, mais ou menos pureza, mais ou menos fidelidade, mais ou menos prudência, quando necessário, mais ou menos humor, mais ou menos simplicidade, mais ou menos boa-fé, mais ou menos amor… Que outra coisa é alimentar o filho ou fazer amor virtuosamente, isto é, excelentemente? Há uma maneira medíocre, egoísta, odienta às vezes de fazer amor. E há outra, ou várias outras, tantos quantos são os indivíduos e os casais, de fazê-lo bem, o que é bem-fazer, o que é virtude. O amor físico não é mais que um exemplo, que seria tão absurdo superestimar, como muitos fazem hoje em dia, como foi, durante séculos, diabolizar. O amor, se nasce da sexualidade, como quer Freud e como acredito, não poderia reduzir-se a ela, e em todo caso vai muito além de nossos pequenos ou grandes prazeres eróticos. É toda a nossa vida, privada ou pública, familiar ou profissional, que só vale proporcionalmente ao amor que nela pomos ou encontramos. Por que seríamos egoístas, se não amássemos a nós mesmos? Por que trabalharíamos, se não fosse o amor ao dinheiro, ao conforto ou ao trabalho? Por que a filosofia, se não fosse o amor à sabedoria? E, se eu não amasse a filosofia, por que todos estes livros? Por que este, se eu não amasse as virtudes? E por que você o leria, se não compartilhasse algum desses amores? O amor não se comanda, pois é o amor que comanda. Isso também é válido, obviamente, em nossa vida moral ou ética. Só necessitamos de moral em falta de amor, repitamos, e é por isso que temos tanta necessidade de moral! É o amor que comanda, mas o amor faz falta: o amor comanda em sua ausência e por essa própria ausência. É o que o dever exprime ou revela, o dever que só nos constrange a fazer aquilo que o amor, se estivesse presente, bastaria, sem coerção, para suscitar. Como o amor poderia comandar outra coisa que não ele mesmo, que não se comanda, ou outra coisa pelo menos que não o que se assemelha a ele? Só se comanda a ação, e isso diz o essencial: não é o amor que a moral prescreve, é realizar, por dever, essa própria ação que o amor, se estivesse presente, já teria livremente consumado. Máxima do dever: Age como se amasses. No fundo, é o que Kant chamava de amor prático: “O amor para com os homens é possível, para dizer a verdade, mas não pode ser comandado, pois não está ao alcance de nenhum homem amar alguém simplesmente por ordem. É, pois, simplesmente o amor prático que está incluído nesse núcleo de todas as leis. […] Amar o próximo significa praticar de bom grado todos os seus deveres para com ele. Mas a ordem que faz disso uma regra para nós também não pode comandar que tenhamos essa intenção nas ações conformes ao dever, mas simplesmente que tendamos a ela. Porque o mandamento de que devemos fazer alguma coisa de bom grado é em si contraditório.” O amor não é um mandamento: é um ideal (“o ideal da santidade” diz Kant). Mas esse ideal nos guia, e nos ilumina. Não nascemos virtuosos, mas nos tornamos. Como? Pela educação: pela polidez, pela moral, pelo amor. A polidez, como vimos, é um simulacro de moral: agir polidamente é agir como se fôssemos virtuosos. Pelo que a moral começa, no ponto mais baixo, imitando essa virtude que lhe falta e de que no entanto, pela educação, ele se aproxima e nos aproxima. A polidez, numa vida bem conduzida, tem por isso cada vez menos importância, ao passo que a moral tem cada vez mais. É o que os adolescentes descobrem e nos fazem lembrar. Mas isso é apenas o início de um processo, que não poderia deter-se aí. A moral, do mesmo modo, é um simulacro de amor: agir moralmente é agir como se amássemos. Pelo que a moral advém e continua, imitando esse amor que lhe falta, que nos falta, e de que no entanto, pelo hábito, pela interiorização, pela sublimação, ela também se aproxima e nos aproxima, a ponto às vezes de se abolir nesse amor que a atrai, que a justifica e a dissolve. Agir bem é, antes de tudo, fazer o que se faz (polidez), depois o que se deve fazer (moral), enfim, às vezes, é fazer o que se quer, por pouco que se ame (ética). Como a moral liberta da polidez consumando-a (somente o homem virtuoso não precisa mais agir como se o fosse), o amor, que consuma por sua vez a moral, dela nos liberta: somente quem ama não precisa mais agir como se amasse. É o espírito dos Evangelhos (“Ama e faz o que quiseres”), pelo que Cristo nos liberta da Lei, explica Spinoza, não a abolindo, como queria estupidamente Nietzsche, mas consumando-a (“Não vim para revogar, vim para cumprir…”), isto é, comenta Spinoza, confirmando-a e inscrevendo-a para sempre “no fundo dos corações”. A moral é esse simulacro de amor, pelo qual o amor, que dela nos liberta, se torna possível. Ela nasce da polidez e tende ao amor; ela nos faz passar de uma a outro. É por isso que, mesmo austera, mesmo desagradável, nós a amamos. Além disso cumpre amar o amor? Sem dúvida, mas nós de fato o amamos (pois amamos pelo menos ser amados), ou a moral nada poderia por quem não o amasse. Sem esse amor ao amor estaríamos perdidos, e é essa talvez a verdadeira definição do inferno, quero dizer da danação, da perdição, aqui e agora. Cumpre amar o amor ou não amar nada, amar o amor ou se perder. De outro modo, que coerção poderia haver? Que moral? Que ética? Sem o amor, o que restaria de nossas virtudes? E que valeriam elas se não as amássemos? Pascal, Hume e Bergson são mais esclarecedores aqui do que Kant: a moral vem mais do sentimento do que da lógica, mais do coração do que da razão, e a própria razão só comanda (pela universalidade) ou só serve (pela prudência) tanto quanto o desejarmos. Kant é engraçado quando pretende combater o egoísmo ou a crueldade com o princípio da não-contradição! Como se aquele que não hesita em mentir, em matar, em torturar, fosse preocupar-se com que a máxima de sua ação pudesse ou não ser erigida, sem contradição, em lei universal! Que lhe importa a contradição? Que lhe importa o universal? Só precisamos de moral em falta de amor. Mas só somos capazes de moral, e só sentimos essa necessidade, pelo pouco de amor, ainda que a nós mesmos, que nos foi dado, que soubemos conservar, sonhar ou reencontrar… O amor é portanto primeiro, não em absoluto, sem dúvida (pois então seria Deus), mas em relação à moral, ao dever, à Lei. É o alfa e o ômega de toda virtude. Primeiro a mãe e seu filho. Primeiro o calor dos corpos e dos corações. Primeiro a fome e o leite. Primeiro o desejo, primeiro o prazer. Primeiro a carícia que aplaca, primeiro o gesto que protege ou alimenta, primeiro a voz que tranqüiliza, primeiro esta evidência: uma mãe que amamenta; depois esta surpresa: um homem sem violência, que vela uma criança adormecida. Se o amor não fosse anterior à moral, o que saberíamos da moral? E o que ela nos tem a propor de melhor que o amor do qual ela vem, que lhe falta, que a move, que a atrai? O que a torna possível é também aquilo mesmo a que ela tende, e que a liberta. Círculo? Se quisermos, mas não vicioso, pois evidentemente não é o mesmo amor no princípio e no fim. Um é a condição da Lei, sua fonte, sua origem. O outro seria antes seu efeito, sua superação e seu mais belo êxito. É o alfa e o ômega das virtudes, dizia eu, em outras palavras, duas letras diferentes, dois amores diferentes (pelo menos dois!), e, de um ao outro, todo o alfabeto de viver… Círculo, pois, mas virtuoso, pelo que a virtude se torna possível. Não se sai do amor, já que não se sai do desejo. Mas o desejo muda de objeto, se não de natureza, mas o amor se transforma e nos transforma. Isso justifica que, antes de falar de virtude propriamente, tomemos um certo recuo. O que é o amor? Eis a grande questão. Eu gostaria de propor três respostas, que não se opõem tanto (embora se oponham, como veremos) quanto se completam. Não estou inventando nenhuma das três. O amor não é tão desconhecido assim, nem a tradição tão cega, a ponto de ser preciso inventar sua definição! Tudo talvez já tenha sido dito. Falta compreender. Resta também, talvez, uma certa idéia do amor, na medida em que não está submetido ao valor do que ama, já que o gera, já que é sua fonte. “Amor espontâneo”, dizia Nygren, “amor sem motivo, amor criador…” É o próprio amor. Não é porque uma coisa é boa que a desejamos, explica Spinoza, é porque a desejamos que a julgamos boa. Potência do desejo, que faz tesouros e jóias, como dirá Nietzsche, de todas as coisas avaliadas. Isso vale igualmente e sobretudo para o amor. Não é porque uma coisa é amável que a amamos; é porque a amamos que é amável. Assim, os pais amam seu filho antes de conhecê-lo, antes de ser amados por ele, e o que quer que ele seja, o que quer que se torne. Isso excede erôs, excede philia, pelo menos tais como os vivemos ou os pensamos geralmente (como submetidos ao valor prévio de seu objeto e determinados por esse valor). O amor é primeiro, não quanto ao ser (pois então seria Deus), mas quanto ao valor: o que vale é o que amamos. É a esse título, sem dúvida, que ele é o valor supremo: o alfa e o ômega de viver, dizia eu, a origem e o fim de nossas avaliações. Mas então o amor também vale, se o amamos, e tanto mais quanto mais amamos. Não é porque as pessoas são amáveis que devemos amá-las, é na medida em que as amamos que são (para nós) amáveis. A caridade é esse amor que não espera ser merecido, esse amor primeiro, gratuito, espontâneo, de fato, que é a verdade do amor e seu horizonte. Seja como for, enquanto se opõe ao egoísmo, ao amor a si, ao conatus, esse amor desinteressado pode parecer misterioso, e podemos até duvidar da sua existência. Amar o próximo como a si mesmo, será possível? Sem dúvida, não. Mas indica uma direção, que é a do amor. Ora, se essa direção, na amizade, é a da vida, da alegria, da potência, na caridade ela parece se inverter, como se o vivo devesse renunciar a si para deixar o outro existir. É o tema bem conhecido da morte de si mesmo, nos místicos, ou da descriação, em Simone Weil: do mesmo modo que Deus, na criação, renuncia a ser tudo, “devemos renunciar a ser alguma coisa”.
Meu Deus, concedei-me tornar-me nada. Pode-se ver nisso um triunfo da pulsão de morte, que se relacionará sem dificuldade ao que há de possivelmente patológico (desta vez no sentido comum do termo) na personalidade de Simone Weil. Tudo bem. Mas, admitido isso, falta saber o que fizemos dessa pulsão de morte ou, por assim dizer, da agressividade. Pois o que Freud mostrou ou sugeriu, e que esquecemos depressa demais, é que a pulsão de morte triunfa necessariamente, pois a própria vida lhe é subordinada, e em todo caso não conseguiríamos nos desvencilhar dela pura e simplesmente. Que desejo não é também desejo de morte? Que vida não é violência? Muitos chamarão de amor apenas a negação desse desejo, dessa violência, dessa agressividade, que é viver. Mas Simone Weil pratica pouco a negação. O que vemos nela é, antes, a introversão da morte, da violência, da negatividade, ou, para dizer com palavras que não são as dela, a retroversão da pulsão de morte no sentido do eu, o que liberta a pulsão de vida e a torna disponível para outrem. O desejo permanece (pois “somos desejo!”), a alegria permanece (pois “a alegria e o sentimento de realidade são idênticos”), o amor permanece (pois “a crença na existência de outros seres humanos como tais é amor”), mas libertados do egoísmo, da esperança, da possessividade – como que libertados de nós mesmos, da “prisão do eu”, e mais leves, mais alegres, mais luminosos: já que o ego não é mais um obstáculo ao real ou à alegria, já que cessou de absorver nele todo o amor ou toda a atenção disponíveis. Essa leveza, essa alegria, essa luz, são as da sabedoria, são as da santidade, e é o que as reúne. Não é seguro que Simone Weil as tenha alcançado – aliás, ela nunca o pretendeu. Mas nos ajuda a pensá-las. “O pecado em mim diz ‘eu’”, ela escreve. E mais adiante: “Devo amar ser nada. Como seria horrível se eu fosse alguma coisa. Amar meu nada, amar ser nada.” Ressentimento, ideal ascético, ódio de si? Pode-se dizer assim. Isso pode até existir, e existe sem dúvida. Mas, se fosse o único conteúdo desse amor, Simone Weil nos comoveria a esse ponto? Nos esclareceria a esse ponto? Talvez haja também outra coisa, que seria como que uma inversão das pulsões vitais e mortíferas ou, para dizer melhor (pois essas pulsões, ao que tudo indica, são uma só coisa), como que uma permutação de seus objetos nos dois pólos de uma mesma ambivalência. Pôr sua vida em Deus, explica Simone Weil, é “pôr sua vida no que não se pode de modo algum tocar”. E acrescenta: “É impossível. É uma morte. É disso que precisamos.” Eros e Tanatos… Na maioria das pessoas, ou em todas e na maior parte do tempo, Eros se concentra no eu (e só se projeta nos outros enquanto estes podem nos faltar ou nos regozijar: enquanto podem nos servir), ao passo que Tanatos se concentra de preferência nos outros: amamo-nos mais facilmente do que aos outros, detestamos os outros mais facilmente do que a nós mesmos. O que Simone Weil chama de descriação e que, segundo ela, se exprime na caridade poderia talvez ser pensado (nos conceitos de Freud, se não nos dela) como uma inversão ou um cruzamento dessas duas forças ou de seus objetos, cessando o eu de monopolizar a pulsão de vida, cessando de absorver a energia positiva e concentrando em si, ao contrário, toda a pulsão de morte ou toda a energia negativa. Há lugar aqui, parece-me, para uma leitura não-religiosa de Simone Weil, que poderia integrar numa teoria materialista (por exemplo, de inspiração freudiana) algo dessa descriação ou, como ela também diz, dessa “reviravolta do positivo e do negativo”. Assim também, devemos morrer para liberar a energia atada, para possuir uma energia livre capaz de amoldar-se à verdadeira relação das coisas. A verdadeira relação das coisas? Sua igualdade absoluta, pois nenhuma vale sem o amor, pois todas valem pelo amor. Pelo que a caridade nada mais é que a justiça (“o Evangelho”, observa Simone Weil, “não faz nenhuma distinção entre o amor ao próximo e a justiça”), de modo que, antes, ela só se distingue da justiça pelo amor (podemos ser justos sem amar, não podemos amar universalmente sem ser justos), pelo que ela é como que um amor libertado da injustiça do desejo (erôs) e da amizade (philia), como um amor universal, pois, sem preferência nem escolha, como uma dileção sem predileção, como um amor sem limites e mesmo sem justificativas egoístas ou afetivas. Assim, a caridade não poderia ser reduzida à amizade, que sempre supõe uma escolha, uma preferência, uma relação privilegiada, ao passo que a caridade, ao contrário, pretende-se universal e refere-se especialmente aos inimigos ou aos indiferentes (já que, para os outros a amizade pode bastar). Como observa Ferdinand Prat, “não se diria em latim, nem com maior razão em grego: ‘Amate (phileite) inimico vestros’, seria pedir o impossível; mas sempre: ‘Diligete (agapate) inimico vestros’”. Como poderíamos ser amigos de nossos inimigos? Como poderíamos nos regozijar com sua existência, quando ela nos fere, quando ela nos mata? Portanto, temos de amá-los de outro modo. Quanto a erôs, não se encontra nem ele nem qualquer palavra da mesma raiz, em nenhum texto do Novo Testamento. Como, aliás, poderíamos sentir falta de nossos inimigos? Como poderíamos esperar deles um bem, um prazer, uma felicidade? Isso confirma que o amor agápico é bem singular, precisamente pelo fato de se pretender universal. Estar enamorado de seu próximo, em outras palavras, de todo o mundo e de qualquer um, a fortiriori estar enamorado de seus inimigos seria um absurdo evidente. E não é um amigo, observava Aristóteles, quem é amigo de todos. A caridade é, pois, outra coisa: “É o amor transfigurado em virtude”, como diz Jankélévitch, ou antes (se a amizade, como creio, já pode ser uma virtude), é o amor “tornado permanente e crônico, estendido à universalidade dos homens e à totalidade da pessoa”, que também pode se referir, é claro, àquele de quem somos amante ou amigo, mas que se dirige a todos os humanos, bons ou maus, amigos ou inimigos, o que de resto não nos impede de preferir aqueles (quanto à amizade) nem de combater estes (se pudermos combatê-los sem ódio: se o ódio não for a única motivação do combate), mas que introduz nas relações humanas aquele horizonte de universalidade que a compaixão ou a justiça já sugeriam, por certo, mas sobretudo de maneira negativa ou formal, e que a caridade, na medida do possível, vem encher de um conteúdo positivo e concreto. É a aceitação alegre do outro, e de qualquer outro. Tal como ele é e quem quer que seja. Enquanto é universal, a caridade refere-se também ao eu (quando Pascal escreve que é necessário se odiar, falta-lhe evidentemente caridade por si mesmo: que sentido teria amar o próximo como a si mesmo, se não se devesse amar a si mesmo?), mas sem privilégio algum. “Amar um estranho como a si mesmo”, escreve com razão Simone Weil, “implica uma contrapartida: amar a si mesmo como a um estranho.” É aí que voltamos a encontrar Pascal: “Numa palavra, o eu tem duas qualidades. É injusto em si por se fazer o centro de tudo. É incômodo aos outros por querer subjugá-los, porque cada eu é inimigo e gostaria de ser tirano de todos os outros.” A caridade é o antídoto dessa tirania e dessa injustiça, que ela combate por meio de um descentramento (ou, diria Simone Weil, de uma descriação) do eu. O eu só é odiável porque não sabe amar – e se amar – como deveria. Porque ama apenas a si, ou para si (por cobiça ou concupiscência). Por ser egoísta. Por ser injusto. Por ser tirânico. Por absorver em si – como se fosse um buraco negro espiritual – toda alegria, todo amor, toda luz. A caridade, embora não seja incompatível com o amor a si (que ela inclui, ao contrário, purificando-o: “amar a si mesmo como a um estranho”), opõe-se evidentemente a esse egoísmo, a essa injustiça – a essa escravidão tirânica do eu. Talvez seja isso o que melhor a define: é um amor libertado do ego e que liberta dele. Fosse ela impossível de se viver, ainda assim necessária a se pensar: para saber o que nos falta ou o que faz falta em nós. Porque esse amor é pelo menos objeto de desejo, e essa falta em nós basta para fazer nascer seu valor ou para fazê-la nascer como valor. Pelo que o amor seria efetivamente “essa sede que inventa as fontes”, e a própria fonte: como uma falta que libertasse de toda falta, como uma potência que libertasse da potência. Porque o amor nos falta, porque o amor nos regozija: agapé também é um objeto ou um horizonte para erôs e philia, que proíbe que um e outro permaneça prisioneiro de si, satisfeito de si, que sempre os obriga – e isso Platão percebeu – a ir além de todo objeto possível, de toda posse possível, de toda preferência possível, até essa zona do espírito ou do ser em que nada mais falta e em que tudo nos regozija, zona a que Platão chamava o Bem, a que outros chamaram Deus, de dois mil anos para cá, e que talvez não seja nada mais do que o amor que nos chama na exata medida – mas apenas nessa medida – em que o chamamos, em que o amamos, em que às vezes vivemos, se não sua presença, que nunca é verificada, pelo menos sua ausência, pelo menos sua exigência, pelo menos seu mandamento. O amor não pode ser comandado, dizia eu, pois comanda. Mas comanda efetivamente, e é por isso que ele é toda a lei, como são Paulo havia visto, e mais precioso até que a ciência, a fé ou a esperança, que só valem por ele, quando valem, e para ele. Cabe aqui citar o mais belo texto, talvez, que já foi escrito sobre a caridade, da qual este longo capítulo, no fundo, pretendia apenas ser uma justificação, mas sem Deus, e tanto pior para aqueles que consideram isso impossível ou contraditório: Ainda que eu fale a língua dos homens e dos anjos, se não tiver caridade, não serei mais que bronze que soa ou címbalo que retine. Ainda que eu tenha o dom da profecia e conheça todos os mistérios e toda a ciência; ainda que eu tenha a plenitude da fé, uma fé de transportar montanhas, se não tiver caridade, nada serei. E, ainda que eu distribua todos os meus bens em esmolas, ainda que entregue o meu próprio corpo às chamas,
A caridade é paciente, a caridade é serviçal; ela não é invejosa; não se gaba, não se infla, ela não se conduz inconvenientemente, não procura os seus interesses, não se exaspera, não leva em conta o mal; não se alegra com a injustiça, mas põe sua alegria na verdade. A caridade não passa nunca. As profecias? Elas desaparecerão. As línguas? Elas se calarão. A ciência? Ela desaparecerá. Porque parcial é nossa ciência, também parcial nossa profecia. Quando, porém, vier o que é perfeito, o que é parcial desaparecerá. Quando eu era menino, falava como menino, sentia como menino, pensava como menino, raciocinava como menino; Essas “coisas” são o que tradicionalmente se chama de três virtudes teologais (porque teriam Deus mesmo por objeto). Duas delas, a fé e a esperança, estão ausentes deste tratado, porque me pareceram, de fato, não ter outro objeto plausível que não Deus, em que não creio. Dessas duas virtudes, aliás, podemos prescindir: basta a coragem, diante do futuro ou do perigo, assim como a boa-fé, diante da verdade ou do desconhecido. Mas como poderíamos prescindir da caridade (ao menos como idéia ou como ideal)? E quem ousaria pretender que ela só pode ter Deus como objeto, quando todos sentem (e quando Paulo escreve explicitamente) o contrário, a saber, que ela só pode existir por inteiro no amor ao próximo? De resto, santo Agostinho e santo Tomás, comentando o hino à caridade, bem mostraram que, das três virtudes teologais, a caridade não era apenas “a maior das três”, como dizia são Paulo, mas também a única a ter um sentido em Deus ou, como dizem, no Reino. A fé passará (como crer em Deus quando se é Deus?), a esperança passará (no Reino, não haverá mais nada a esperar), e é por isso que se diz que apenas a caridade “não passará”: no Reino só haverá amor, sem esperança e sem fé! Aí estamos. A esperança e a fé nos deixaram: nada mais há senão a falta, nada mais há senão a alegria, nada mais há senão a caridade. Isso não é, necessariamente, trair o espírito de Cristo, nem renunciar em tudo a segui-lo. Cristo, observa santo Tomás, não tinha “nem a fé nem a esperança”, no entanto houve nele “uma caridade perfeita”. Que essa perfeição não nos é acessível, está claro. Mas será isso uma razão para renunciarmos ao pouco de amor puro, gratuito ou desinteressado – ao pouco de caridade – de que talvez sejamos capazes? Digo “talvez” porque nada garante que esse amor seja ao menos possível. Mas assim acontece, mostrava Kant, com toda virtude, e isso portanto não refuta nem a caridade nem o dever. Um tal amor está a nosso alcance? Podemos vivê-lo? Podemos nos aproximar dele? Não podemos sabê-lo sem prová-lo. Talvez seja “esse amor que falta a todo amor”, como diz Bobin, ao qual no entanto nada falta, e que por isso nos falta, e nos atrai. Mesmo ausente, ele nos ilumina: a ausência do amor ainda é um amor. “Amar”, dizia Alain, “é encontrar sua riqueza fora de si.” É por isso que o amor é pobre, sempre, e a única riqueza. Mas há várias maneiras de ser pobre no amor, pelo amor, ou de ser rico, antes, de sua pobreza: pela falta, que é paixão, pela alegria recebida ou partilhada, que é amizade, enfim pela alegria dada, e dada em pura perda, pela alegria dada e abandonada, que é caridade. Haveria, pois, para resumir, para simplificar, três maneiras de amar, ou três tipos de amor, ou três gradações no amor: a carência (erôs), o regozijo (philia), a caridade (agapé). Pode ser que esta última seja, em verdade, apenas um halo de doçura, de compaixão e de justiça, que venha temperar a violência da falta ou do regozijo, que venha moderar ou aprofundar o que nossos outros amores possam ter de demasiado brutal ou de demasiado pleno. Há um amor que é como uma fome, outro que ressoa como uma gargalhada. A caridade mais parecia um sorriso, quando não, o que lhe sucede, uma vontade de chorar. Não vejo que isso a condene. Nossos risos são ruins mais freqüentemente que nossas lágrimas. Compaixão? Pode ser que seja de fato esse o conteúdo principal da caridade, seu afeto mais efetivo, ou mesmo seu verdadeiro nome. Em todo caso é o nome que lhe dá o Oriente budista, que seria nisso, como sugeri, mais lúcido ou mais realista do que o Ocidente cristão. Pode ser também que a amizade – mas uma amizade purificada, como que rarefeita à proporção de sua extensão – seja o único amor generoso de que sejamos capazes: é sem dúvida o que um epicurista teria objetado a são Paulo ou aos primeiros cristãos. A caridade, se ela é possível, se reconheceria no entanto pelo fato (no que ela superaria a compaixão) de não ter necessidade do sofrimento do outro para amá-lo, de não estar “a reboque da felicidade”, como dizia Jankélévitch, de ser como que uma compaixão primeira e não-reativa; do mesmo modo que se distinguiria da simples amizade, e a superaria, pelo fato de não ter necessidade de ser amada para amar, e nem poder sê-lo, pelo fato de nada ter a ver com a reciprocidade ou o interesse, de ser como uma amizade primeira e não-reativa: seria como que uma compaixão libertada do sofrimento, e como que uma amizade, repitamos, libertada do ego. Sua ausência, mesmo que seja insolúvel, é o que torna as virtudes necessárias: o amor (mas o amor não egoísta) liberta da lei, quando existe, e a inscreve no fundo dos corações, quando falta. Que ele falte o mais das vezes, e sempre talvez, é o que justifica este tratado: para que falar de moral, se não faltasse o amor? “A melhor e mais curta definição da virtude”, dizia santo Agostinho, “é esta: a ordem do amor.” Mas o amor, na maioria das vezes, só brilha por sua ausência: daí o fulgor das virtudes e a obscuridade de nossas vidas. Fulgor secundário, obscuridade essencial, mas não total. As virtudes, quase todas, só se justificam por esta falta em nós do amor, e portanto se justificam. Elas não poderiam, porém, preencher esse vazio que as ilumina: aquilo mesmo que as torna necessárias impede que as creiamos suficientes. Pelo que o amor nos destina à moral e dela nos liberta. Pelo que a moral nos destina ao amor, ainda que ele esteja ausente, e a ele se submete. /André Comte-Sponville
Meu Deus, concedei-me tornar-me nada. Pode-se ver nisso um triunfo da pulsão de morte, que se relacionará sem dificuldade ao que há de possivelmente patológico (desta vez no sentido comum do termo) na personalidade de Simone Weil. Tudo bem. Mas, admitido isso, falta saber o que fizemos dessa pulsão de morte ou, por assim dizer, da agressividade. Pois o que Freud mostrou ou sugeriu, e que esquecemos depressa demais, é que a pulsão de morte triunfa necessariamente, pois a própria vida lhe é subordinada, e em todo caso não conseguiríamos nos desvencilhar dela pura e simplesmente. Que desejo não é também desejo de morte? Que vida não é violência? Muitos chamarão de amor apenas a negação desse desejo, dessa violência, dessa agressividade, que é viver. Mas Simone Weil pratica pouco a negação. O que vemos nela é, antes, a introversão da morte, da violência, da negatividade, ou, para dizer com palavras que não são as dela, a retroversão da pulsão de morte no sentido do eu, o que liberta a pulsão de vida e a torna disponível para outrem. O desejo permanece (pois “somos desejo!”), a alegria permanece (pois “a alegria e o sentimento de realidade são idênticos”), o amor permanece (pois “a crença na existência de outros seres humanos como tais é amor”), mas libertados do egoísmo, da esperança, da possessividade – como que libertados de nós mesmos, da “prisão do eu”, e mais leves, mais alegres, mais luminosos: já que o ego não é mais um obstáculo ao real ou à alegria, já que cessou de absorver nele todo o amor ou toda a atenção disponíveis. Essa leveza, essa alegria, essa luz, são as da sabedoria, são as da santidade, e é o que as reúne. Não é seguro que Simone Weil as tenha alcançado – aliás, ela nunca o pretendeu. Mas nos ajuda a pensá-las. “O pecado em mim diz ‘eu’”, ela escreve. E mais adiante: “Devo amar ser nada. Como seria horrível se eu fosse alguma coisa. Amar meu nada, amar ser nada.” Ressentimento, ideal ascético, ódio de si? Pode-se dizer assim. Isso pode até existir, e existe sem dúvida. Mas, se fosse o único conteúdo desse amor, Simone Weil nos comoveria a esse ponto? Nos esclareceria a esse ponto? Talvez haja também outra coisa, que seria como que uma inversão das pulsões vitais e mortíferas ou, para dizer melhor (pois essas pulsões, ao que tudo indica, são uma só coisa), como que uma permutação de seus objetos nos dois pólos de uma mesma ambivalência. Pôr sua vida em Deus, explica Simone Weil, é “pôr sua vida no que não se pode de modo algum tocar”. E acrescenta: “É impossível. É uma morte. É disso que precisamos.” Eros e Tanatos… Na maioria das pessoas, ou em todas e na maior parte do tempo, Eros se concentra no eu (e só se projeta nos outros enquanto estes podem nos faltar ou nos regozijar: enquanto podem nos servir), ao passo que Tanatos se concentra de preferência nos outros: amamo-nos mais facilmente do que aos outros, detestamos os outros mais facilmente do que a nós mesmos. O que Simone Weil chama de descriação e que, segundo ela, se exprime na caridade poderia talvez ser pensado (nos conceitos de Freud, se não nos dela) como uma inversão ou um cruzamento dessas duas forças ou de seus objetos, cessando o eu de monopolizar a pulsão de vida, cessando de absorver a energia positiva e concentrando em si, ao contrário, toda a pulsão de morte ou toda a energia negativa. Há lugar aqui, parece-me, para uma leitura não-religiosa de Simone Weil, que poderia integrar numa teoria materialista (por exemplo, de inspiração freudiana) algo dessa descriação ou, como ela também diz, dessa “reviravolta do positivo e do negativo”. Assim também, devemos morrer para liberar a energia atada, para possuir uma energia livre capaz de amoldar-se à verdadeira relação das coisas. A verdadeira relação das coisas? Sua igualdade absoluta, pois nenhuma vale sem o amor, pois todas valem pelo amor. Pelo que a caridade nada mais é que a justiça (“o Evangelho”, observa Simone Weil, “não faz nenhuma distinção entre o amor ao próximo e a justiça”), de modo que, antes, ela só se distingue da justiça pelo amor (podemos ser justos sem amar, não podemos amar universalmente sem ser justos), pelo que ela é como que um amor libertado da injustiça do desejo (erôs) e da amizade (philia), como um amor universal, pois, sem preferência nem escolha, como uma dileção sem predileção, como um amor sem limites e mesmo sem justificativas egoístas ou afetivas. Assim, a caridade não poderia ser reduzida à amizade, que sempre supõe uma escolha, uma preferência, uma relação privilegiada, ao passo que a caridade, ao contrário, pretende-se universal e refere-se especialmente aos inimigos ou aos indiferentes (já que, para os outros a amizade pode bastar). Como observa Ferdinand Prat, “não se diria em latim, nem com maior razão em grego: ‘Amate (phileite) inimico vestros’, seria pedir o impossível; mas sempre: ‘Diligete (agapate) inimico vestros’”. Como poderíamos ser amigos de nossos inimigos? Como poderíamos nos regozijar com sua existência, quando ela nos fere, quando ela nos mata? Portanto, temos de amá-los de outro modo. Quanto a erôs, não se encontra nem ele nem qualquer palavra da mesma raiz, em nenhum texto do Novo Testamento. Como, aliás, poderíamos sentir falta de nossos inimigos? Como poderíamos esperar deles um bem, um prazer, uma felicidade? Isso confirma que o amor agápico é bem singular, precisamente pelo fato de se pretender universal. Estar enamorado de seu próximo, em outras palavras, de todo o mundo e de qualquer um, a fortiriori estar enamorado de seus inimigos seria um absurdo evidente. E não é um amigo, observava Aristóteles, quem é amigo de todos. A caridade é, pois, outra coisa: “É o amor transfigurado em virtude”, como diz Jankélévitch, ou antes (se a amizade, como creio, já pode ser uma virtude), é o amor “tornado permanente e crônico, estendido à universalidade dos homens e à totalidade da pessoa”, que também pode se referir, é claro, àquele de quem somos amante ou amigo, mas que se dirige a todos os humanos, bons ou maus, amigos ou inimigos, o que de resto não nos impede de preferir aqueles (quanto à amizade) nem de combater estes (se pudermos combatê-los sem ódio: se o ódio não for a única motivação do combate), mas que introduz nas relações humanas aquele horizonte de universalidade que a compaixão ou a justiça já sugeriam, por certo, mas sobretudo de maneira negativa ou formal, e que a caridade, na medida do possível, vem encher de um conteúdo positivo e concreto. É a aceitação alegre do outro, e de qualquer outro. Tal como ele é e quem quer que seja. Enquanto é universal, a caridade refere-se também ao eu (quando Pascal escreve que é necessário se odiar, falta-lhe evidentemente caridade por si mesmo: que sentido teria amar o próximo como a si mesmo, se não se devesse amar a si mesmo?), mas sem privilégio algum. “Amar um estranho como a si mesmo”, escreve com razão Simone Weil, “implica uma contrapartida: amar a si mesmo como a um estranho.” É aí que voltamos a encontrar Pascal: “Numa palavra, o eu tem duas qualidades. É injusto em si por se fazer o centro de tudo. É incômodo aos outros por querer subjugá-los, porque cada eu é inimigo e gostaria de ser tirano de todos os outros.” A caridade é o antídoto dessa tirania e dessa injustiça, que ela combate por meio de um descentramento (ou, diria Simone Weil, de uma descriação) do eu. O eu só é odiável porque não sabe amar – e se amar – como deveria. Porque ama apenas a si, ou para si (por cobiça ou concupiscência). Por ser egoísta. Por ser injusto. Por ser tirânico. Por absorver em si – como se fosse um buraco negro espiritual – toda alegria, todo amor, toda luz. A caridade, embora não seja incompatível com o amor a si (que ela inclui, ao contrário, purificando-o: “amar a si mesmo como a um estranho”), opõe-se evidentemente a esse egoísmo, a essa injustiça – a essa escravidão tirânica do eu. Talvez seja isso o que melhor a define: é um amor libertado do ego e que liberta dele. Fosse ela impossível de se viver, ainda assim necessária a se pensar: para saber o que nos falta ou o que faz falta em nós. Porque esse amor é pelo menos objeto de desejo, e essa falta em nós basta para fazer nascer seu valor ou para fazê-la nascer como valor. Pelo que o amor seria efetivamente “essa sede que inventa as fontes”, e a própria fonte: como uma falta que libertasse de toda falta, como uma potência que libertasse da potência. Porque o amor nos falta, porque o amor nos regozija: agapé também é um objeto ou um horizonte para erôs e philia, que proíbe que um e outro permaneça prisioneiro de si, satisfeito de si, que sempre os obriga – e isso Platão percebeu – a ir além de todo objeto possível, de toda posse possível, de toda preferência possível, até essa zona do espírito ou do ser em que nada mais falta e em que tudo nos regozija, zona a que Platão chamava o Bem, a que outros chamaram Deus, de dois mil anos para cá, e que talvez não seja nada mais do que o amor que nos chama na exata medida – mas apenas nessa medida – em que o chamamos, em que o amamos, em que às vezes vivemos, se não sua presença, que nunca é verificada, pelo menos sua ausência, pelo menos sua exigência, pelo menos seu mandamento. O amor não pode ser comandado, dizia eu, pois comanda. Mas comanda efetivamente, e é por isso que ele é toda a lei, como são Paulo havia visto, e mais precioso até que a ciência, a fé ou a esperança, que só valem por ele, quando valem, e para ele. Cabe aqui citar o mais belo texto, talvez, que já foi escrito sobre a caridade, da qual este longo capítulo, no fundo, pretendia apenas ser uma justificação, mas sem Deus, e tanto pior para aqueles que consideram isso impossível ou contraditório: Ainda que eu fale a língua dos homens e dos anjos, se não tiver caridade, não serei mais que bronze que soa ou címbalo que retine. Ainda que eu tenha o dom da profecia e conheça todos os mistérios e toda a ciência; ainda que eu tenha a plenitude da fé, uma fé de transportar montanhas, se não tiver caridade, nada serei. E, ainda que eu distribua todos os meus bens em esmolas, ainda que entregue o meu próprio corpo às chamas,
A caridade é paciente, a caridade é serviçal; ela não é invejosa; não se gaba, não se infla, ela não se conduz inconvenientemente, não procura os seus interesses, não se exaspera, não leva em conta o mal; não se alegra com a injustiça, mas põe sua alegria na verdade. A caridade não passa nunca. As profecias? Elas desaparecerão. As línguas? Elas se calarão. A ciência? Ela desaparecerá. Porque parcial é nossa ciência, também parcial nossa profecia. Quando, porém, vier o que é perfeito, o que é parcial desaparecerá. Quando eu era menino, falava como menino, sentia como menino, pensava como menino, raciocinava como menino; Essas “coisas” são o que tradicionalmente se chama de três virtudes teologais (porque teriam Deus mesmo por objeto). Duas delas, a fé e a esperança, estão ausentes deste tratado, porque me pareceram, de fato, não ter outro objeto plausível que não Deus, em que não creio. Dessas duas virtudes, aliás, podemos prescindir: basta a coragem, diante do futuro ou do perigo, assim como a boa-fé, diante da verdade ou do desconhecido. Mas como poderíamos prescindir da caridade (ao menos como idéia ou como ideal)? E quem ousaria pretender que ela só pode ter Deus como objeto, quando todos sentem (e quando Paulo escreve explicitamente) o contrário, a saber, que ela só pode existir por inteiro no amor ao próximo? De resto, santo Agostinho e santo Tomás, comentando o hino à caridade, bem mostraram que, das três virtudes teologais, a caridade não era apenas “a maior das três”, como dizia são Paulo, mas também a única a ter um sentido em Deus ou, como dizem, no Reino. A fé passará (como crer em Deus quando se é Deus?), a esperança passará (no Reino, não haverá mais nada a esperar), e é por isso que se diz que apenas a caridade “não passará”: no Reino só haverá amor, sem esperança e sem fé! Aí estamos. A esperança e a fé nos deixaram: nada mais há senão a falta, nada mais há senão a alegria, nada mais há senão a caridade. Isso não é, necessariamente, trair o espírito de Cristo, nem renunciar em tudo a segui-lo. Cristo, observa santo Tomás, não tinha “nem a fé nem a esperança”, no entanto houve nele “uma caridade perfeita”. Que essa perfeição não nos é acessível, está claro. Mas será isso uma razão para renunciarmos ao pouco de amor puro, gratuito ou desinteressado – ao pouco de caridade – de que talvez sejamos capazes? Digo “talvez” porque nada garante que esse amor seja ao menos possível. Mas assim acontece, mostrava Kant, com toda virtude, e isso portanto não refuta nem a caridade nem o dever. Um tal amor está a nosso alcance? Podemos vivê-lo? Podemos nos aproximar dele? Não podemos sabê-lo sem prová-lo. Talvez seja “esse amor que falta a todo amor”, como diz Bobin, ao qual no entanto nada falta, e que por isso nos falta, e nos atrai. Mesmo ausente, ele nos ilumina: a ausência do amor ainda é um amor. “Amar”, dizia Alain, “é encontrar sua riqueza fora de si.” É por isso que o amor é pobre, sempre, e a única riqueza. Mas há várias maneiras de ser pobre no amor, pelo amor, ou de ser rico, antes, de sua pobreza: pela falta, que é paixão, pela alegria recebida ou partilhada, que é amizade, enfim pela alegria dada, e dada em pura perda, pela alegria dada e abandonada, que é caridade. Haveria, pois, para resumir, para simplificar, três maneiras de amar, ou três tipos de amor, ou três gradações no amor: a carência (erôs), o regozijo (philia), a caridade (agapé). Pode ser que esta última seja, em verdade, apenas um halo de doçura, de compaixão e de justiça, que venha temperar a violência da falta ou do regozijo, que venha moderar ou aprofundar o que nossos outros amores possam ter de demasiado brutal ou de demasiado pleno. Há um amor que é como uma fome, outro que ressoa como uma gargalhada. A caridade mais parecia um sorriso, quando não, o que lhe sucede, uma vontade de chorar. Não vejo que isso a condene. Nossos risos são ruins mais freqüentemente que nossas lágrimas. Compaixão? Pode ser que seja de fato esse o conteúdo principal da caridade, seu afeto mais efetivo, ou mesmo seu verdadeiro nome. Em todo caso é o nome que lhe dá o Oriente budista, que seria nisso, como sugeri, mais lúcido ou mais realista do que o Ocidente cristão. Pode ser também que a amizade – mas uma amizade purificada, como que rarefeita à proporção de sua extensão – seja o único amor generoso de que sejamos capazes: é sem dúvida o que um epicurista teria objetado a são Paulo ou aos primeiros cristãos. A caridade, se ela é possível, se reconheceria no entanto pelo fato (no que ela superaria a compaixão) de não ter necessidade do sofrimento do outro para amá-lo, de não estar “a reboque da felicidade”, como dizia Jankélévitch, de ser como que uma compaixão primeira e não-reativa; do mesmo modo que se distinguiria da simples amizade, e a superaria, pelo fato de não ter necessidade de ser amada para amar, e nem poder sê-lo, pelo fato de nada ter a ver com a reciprocidade ou o interesse, de ser como uma amizade primeira e não-reativa: seria como que uma compaixão libertada do sofrimento, e como que uma amizade, repitamos, libertada do ego. Sua ausência, mesmo que seja insolúvel, é o que torna as virtudes necessárias: o amor (mas o amor não egoísta) liberta da lei, quando existe, e a inscreve no fundo dos corações, quando falta. Que ele falte o mais das vezes, e sempre talvez, é o que justifica este tratado: para que falar de moral, se não faltasse o amor? “A melhor e mais curta definição da virtude”, dizia santo Agostinho, “é esta: a ordem do amor.” Mas o amor, na maioria das vezes, só brilha por sua ausência: daí o fulgor das virtudes e a obscuridade de nossas vidas. Fulgor secundário, obscuridade essencial, mas não total. As virtudes, quase todas, só se justificam por esta falta em nós do amor, e portanto se justificam. Elas não poderiam, porém, preencher esse vazio que as ilumina: aquilo mesmo que as torna necessárias impede que as creiamos suficientes. Pelo que o amor nos destina à moral e dela nos liberta. Pelo que a moral nos destina ao amor, ainda que ele esteja ausente, e a ele se submete. /André Comte-Sponville