É um tema de dissertação que foi proposto várias vezes no exame de baccalauréat (que corresponderia a um exame final do nosso colegial): “Julgar que há o que seja intolerável é sempre dar prova de intolerância?” Ou então, numa forma diferente: “Ser tolerante é tolerar tudo?” A resposta, nos dois casos, é evidentemente não, pelo menos se quisermos que a tolerância seja uma virtude. Deveríamos considerar virtuoso quem tolerasse o estupro, a tortura, o assassinato? Quem veria, nessa tolerância do pior, uma disposição estimável? Mas, embora a resposta só possa ser negativa (o que, para um tema de dissertação, é antes uma fraqueza), a argumentação não deixa de colocar um certo número de problemas, que são de definições e de limites, e que podem ocupar suficientemente nossos secundaristas, imagino, durante as quatro horas da prova… Uma dissertação não é uma sondagem de opinião. É preciso responder, sem dúvida, mas a resposta só vale pelos argumentos que a preparam e que a justificam. Filosofar é pensar sem provas (se houvesse provas não seria mais filosofia), mas não pensar qualquer coisa (pensar qualquer coisa, de resto, não é mais pensar), nem de qualquer jeito. A razão comanda, como nas ciências, mas sem verificação nem refutação possíveis. Por que não se contentar, então, com as ciências? Porque não podemos: elas não respondem a nenhuma das questões essenciais que nos colocamos, nem mesmo às que elas nos colocam. A questão: “É preciso fazer matemática?” Não é suscetível de uma resposta matemática. A questão: “As ciências são verdadeiras?” Não é suscetível de uma resposta científica. Como tampouco – isso é óbvio – as questões relativas ao sentido da vida, à existência de Deus ou ao valor de nossos valores… Ora, como renunciar a isso? Trata-se de pensar tão longe quanto vivemos, portanto mais longe do que podemos, portanto mais longe do que sabemos. A metafísica é a verdade da filosofia, mesmo em epistemologia, mesmo em filosofia moral ou política. Tudo se sustenta, e nos sustenta. Uma filosofia é um conjunto de opiniões razoáveis: a coisa é mais difícil, e mais necessária do que se crê. Dir-se-á que estou me afastando do meu tema. É que não estou fazendo uma dissertação. A escola não pode durar para sempre, ainda bem. De resto, não é certo que tenha me afastado tanto assim da tolerância. Filosofar, dizia eu, é pensar sem provas. É onde também a tolerância intervém. Quando a verdade é conhecida com certeza, a tolerância não tem objeto. Não toleraríamos que o contador que se engana em seus cálculos se recusasse a corrigi-los. Nem o físico, quando a experiência diz que está errado. O direito ao erro só é válido a parte ante; uma vez demonstrado o erro, este deixa de ser um direito e não dá direito algum: perseverar no erro, a parte post, já não é um erro, mas uma falta. É por isso que os matemáticos não precisam da tolerância. As demonstrações bastam para sua paz. Quanto aos que gostariam de impedir os cientistas de trabalhar ou de se exprimir (como a Igreja contra Galileu), não é a tolerância que lhes falta primeiramente: é a inteligência e o amor à verdade. Primeiro conhecer. O verdadeiro prima e se impõe a todos, sem nada impor. Os cientistas necessitam não de tolerância, mas de liberdade. Que se trata de duas coisas diferentes, a experiência basta para atestar. Nenhum cientista pedirá, nem mesmo aceitará, que tolerem seus erros, uma vez conhecidos, nem suas incompetências, na sua especialidade, uma vez reveladas. Mas nenhum aceitaria, tampouco, que lhe ditassem o que deve pensar. Não há outra coerção, para ele, além da experiência e da razão: não há outra coerção além da verdade pelo menos possível, e é isso que se chama liberdade de espírito. Qual a diferença em relação à tolerância? É que esta (a tolerância) só intervém na falta de conhecimento; aquela (a liberdade de espírito) seria antes o próprio conhecimento, enquanto nos liberta de tudo e de nós mesmos. A verdade não obedece, dizia Alain; é nisso que é livre, embora necessária (ou porque necessária), e que torna livre. “A Terra gira em torno do Sol”: aceitar ou não essa proposição não decorre em absoluto, de um ponto de vista científico, da tolerância. Uma ciência só avança corrigindo seus erros, portanto não poderíamos pedir-lhe que os tolerasse. O problema da tolerância só surge nas questões de opinião. É por isso que ela surge com tanta freqüência, e quase sempre. Ignoramos mais do que sabemos, e tudo o que sabemos depende, direta ou indiretamente, de algo que ignoramos. Quem pode provar absolutamente que a Terra existe? Que o Sol existe? E que sentido há, se nenhum dos dois existe, em afirmar que aquela gira em torno deste? A mesma proposição que não tem a ver com ela, de um ponto de vista filosófico, moral ou religioso. É o caso da teoria evolucionista de Darwin: os que pedem que seja tolerada (ou, a fortiriori, os que pedem que seja proibida) não compreenderam em que ela é científica; e os que gostariam de impô-la autoritariamente como verdade absoluta do homem e de sua gênese, entretanto, dariam prova de intolerância. A Bíblia não é nem demonstrável nem refutável; portanto, ou se crê nela, ou se tolera que se creia nela. É aí que voltamos a encontrar nosso problema. Se devemos tolerar a Bíblia, por que não Mein Kampf? E, se toleramos Mein Kampf, por que não o racismo, a tortura, os campos de concentração? Uma tolerância universal seria, é claro, moralmente condenável: porque esqueceria as vítimas, porque as abandonaria à sua sorte, porque deixaria perpetuar-se seu martírio.Tolerar é aceitar o que poderia ser condenado, é deixar fazer o que se poderia impedir ou combater. Portanto, é renunciar a uma parte de seu poder, de sua força, de sua cólera… Assim, toleramos os caprichos de uma criança ou as posições de um adversário. Mas isso só é virtuoso se assumirmos, como se diz, se superarmos para tanto nosso próprio interesse, nosso próprio sofrimento, nossa própria impaciência. A tolerância só vale contra si mesmo, e a favor de outrem. Não há tolerância quando nada se tem a perder, menos ainda quando se tem tudo a ganhar em suportar, isto é, em nada fazer. “Temos todos bastante força”, dizia La Rochefoucauld, “para suportar os males de outrem.” Talvez, mas ninguém veria nisso tolerância. Sarajevo era, dizem, cidade de tolerância; abandoná-la hoje (dezembro de 1993) a seu destino de cidade sitiada, de cidade esfomeada, de cidade massacrada, não passaria, para a Europa, de covardia. Tolerar é se responsabilizar: a tolerância que responsabiliza o outro já não é tolerância. Tolerar o sofrimento dos outros, tolerar a injustiça de que não somos vítimas, tolerar o horror que nos poupa não é mais tolerância: é egoísmo, é indiferença, ou pior. Tolerar Hitler era ser seu cúmplice, pelo menos por omissão, por abandono, e essa tolerância já era colaboração. Antes o ódio, antes a fúria, antes a violência, do que essa passividade diante do horror, do que essa aceitação vergonhosa do pior! Uma tolerância universal seria tolerância do atroz: atroz tolerância! Mas essa tolerância universal também seria contraditória, pelo menos na prática, e por isso não apenas moralmente condenável, como acabamos de ver, mas politicamente condenada. Foi o que mostraram, em problemáticas diferentes, Karl Popper e Vladimir Jankélévitch. Levada ao extremo, a tolerância “acabaria por negar a si mesma”, pois deixaria livres as mãos dos que querem suprimi-la. A tolerância só vale, pois, em certos limites, que são os de sua própria salvaguarda e da preservação de suas condições de possibilidade. É o que Karl Popper chama de “o paradoxo da tolerância”: “Se formos de uma tolerância absoluta, mesmo para com os intolerantes, e se não defendermos a sociedade tolerante contra seus assaltos, os tolerantes serão aniquilados, e com eles a tolerância.” Isso só vale na medida em que a humanidade é o que é, conflitual, passional, atormentada, mas é por isso que vale. Uma sociedade em que uma tolerância universal fosse possível já não seria humana, e aliás já não necessitaria de tolerância. Ao contrário do amor ou da generosidade, que não têm limites intrínsecos nem outra finitude além da nossa, a tolerância é, pois, essencialmente limitada: uma tolerância infinita seria o fim da tolerância! Não dar liberdade aos inimigos da liberdade? Não é tão simples assim. Uma virtude não poderia se isolar na intersubjetividade virtuosa: aquele que só é justo com os justos, generoso com os generosos, misericordioso com os misericordiosos, etc., não é nem justo nem generoso nem misericordioso. Tampouco é tolerante aquele que só o é com os tolerantes. Se a tolerância é uma virtude, como acredito e como geralmente se aceita, ela vale por si mesma, inclusive para com os que não a praticam. A moral não é nem um mercado nem um espelho. É verdade, claro, que os intolerantes não teriam nenhum motivo para queixar-se de que se é intolerante para com eles. Mas onde já se viu uma virtude depender do ponto de vista dos que não a têm? O justo deve ser guiado “pelos princípios da justiça, e não pelo fato de que o injusto não pode se queixar”. Do mesmo modo, o tolerante, pelos princípios da tolerância. Se não se deve tolerar tudo, pois seria destinar a tolerância à sua perda, também não se poderia renunciar a toda e qualquer tolerância para com aqueles que não a respeitam. Uma democracia que proibisse todos os partidos não democráticos seria muito pouco democrática, assim como uma democracia que os deixasse fazer tudo e qualquer coisa seria democrática demais, ou antes, mal democrática demais e, por isso, condenada – pois ela renunciaria a defender o direito pela força, quando necessário, e a liberdade pela coerção. O critério não é moral, aqui, mas político. O que deve determinar a tolerabilidade de determinado indivíduo, grupo ou comportamento não é a tolerância de que eles dão mostra (porque então todos os grupos extremistas de nossa juventude deveriam ter sido proibidos, o que só lhes daria razão), mas sua periculosidade efetiva: uma ação intolerante, um grupo intolerante, etc., devem ser proibidos se, e somente se, ameaçarem efetivamente a liberdade ou, em geral, as condições de possibilidade da tolerância. Numa República forte e estável, uma manifestação contra a democracia, contra a tolerância ou contra a liberdade não basta para colocá-las em perigo; portanto, não há motivo para proibi-las, e seria uma falta de tolerância querê-lo. Mas, se as instituições estão fragilizadas, se a guerra civil está iminente ou já começou, se grupos facciosos ameaçam tomar o poder, a mesma manifestação pode se tornar um perigo verdadeiro; então pode ser necessário proibi-la, impedi-la, até pela força, e seria falta de firmeza ou de prudência renunciar a essa possibilidade. Em suma, depende dos casos, e essa “casuística da tolerância”, como diz Jankélévitch, é um dos problemas principais de nossas democracias. Depois de ter evocado o paradoxo da tolerância, que faz com que a enfraqueçamos à força de querer estendê-la infinitamente, Karl Popper acrescenta o seguinte: Não quero dizer com isso que seja sempre necessário impedir a expressão de teorias intolerantes. Enquanto for possível enfrentá-las com argumentos lógicos e conte-las com ajuda da opinião pública, seria um erro proibi-las. Mas é necessário reivindicar o direito de fazê-lo, mesmo pela força, se necessário, porque pode muito bem acontecer que os partidários dessas teorias se recusem a qualquer discussão lógica e só respondam aos argumentos com a violência. Seria necessário então considerar que, assim fazendo, eles se colocam fora da lei e que a incitação à tolerância é tão criminosa quanto a incitação ao assassinato, por exemplo. Democracia não é fraqueza. Tolerância não é passividade. Moralmente condenável e politicamente condenada, uma tolerância universal não seria, pois, nem virtuosa nem viável. Ou, para dizer de outro modo: há muita coisa intolerável, mesmo e sobretudo para o tolerante! Moralmente: o sofrimento de outrem, a injustiça, a opressão, quando poderiam ser impedidos ou combatidos por um mal menor. Politicamente: tudo o que ameaça efetivamente a liberdade, a paz ou a sobrevivência de uma sociedade (o que supõe uma avaliação, sempre incerta, dos riscos), logo também tudo o que ameaça a tolerância, quando essa ameaça não é simplesmente a expressão de uma posição ideológica (a qual poderia ser tolerada), mas sim um perigo real (o qual deve ser combatido, pela força, se necessário). Isso deixa espaço para a casuística, no melhor dos casos, e para a má-fé, na pior – isso deixa espaço para a democracia, para suas incertezas e para seus riscos, que são preferíveis, no entanto, ao conforto e às certezas de um totalitarismo. O que é o totalitarismo? É o poder total (de um partido ou do Estado) sobre o todo (de uma sociedade). Mas, se o totalitarismo se distingue da simples ditadura ou do absolutismo, isso se dá sobretudo por sua dimensão ideológica. O totalitarismo nunca é o poder absoluto de um homem ou grupo: é também, talvez antes de tudo, o poder de uma doutrina, de uma ideologia (freqüentemente com pretensões científicas), de uma “verdade”, ou pretensa verdade. A cada tipo de governo seu princípio, dizia Montesquieu: como uma monarquia funciona com base na honra, uma república na virtude e um despotismo no temor, o totalitarismo, acrescenta Hannah Arendt, funciona com base na ideologia ou (visto de dentro) na “verdade”. É nisso que o totalitarismo é intolerante: porque a verdade não se discute, não se vota e independe das preferências ou das opiniões de cada um. É como uma tirania do verdadeiro. É nisso também que toda intolerância tende ao totalitarismo ou, em matéria religiosa, ao integrismo: não se pode pretender impor seu ponto de vista a não ser em nome de sua suposta verdade, ou antes, é apenas nessa condição que tal imposição pode se pretender legítima. Uma ditadura que se impõe pela força é um despotismo; se ela se impõe pela ideologia, um totalitarismo. Compreende-se que a maioria dos totalitarismos também sejam despotismos (afinal, a força, se necessário, tem de vir socorrer a idéia…) e que, em nossas sociedades modernas, que são sociedades de comunicação, a maioria dos despotismos tendam ao totalitarismo (afinal, a idéia tem de dar razão à força). Doutrinamento e sistema policial caminham juntos. O caso é que a questão da tolerância, que durante muito tempo foi apenas uma questão religiosa, tende a invadir o todo da vida social; ou antes, pois é obviamente o inverso que se tem de dizer, o sectarismo, de religioso que era no início, tornou-se no século XX onipresente e multiforme, agora muito mais sob dominação da política do que da religião: daí o terrorismo, quando o sectarismo está na oposição, ou o totalitarismo, quando ele está no poder. Dessa história, que foi a nossa, talvez saiamos um dia. Por outro lado, não sairemos da intolerância, do fanatismo, do dogmatismo. O que é a tolerância? Alain respondia: “Uma espécie de sabedoria que supera o fanatismo, esse temível amor à verdade.” Devemos então deixar de amar o verdadeiro? Seria dar um bonito presente ao totalitarismo e quase proibir-se combatê-lo! “O sujeito ideal do reinado totalitário”, observava Hannah Arendt, “não é nem o nazista convicto, nem o comunista convicto, mas o homem para quem a distinção entre fato e ficção (i.e., a realidade da experiência) e a distinção entre verdadeiro e falso (i.e., as normas do pensamento) não existem mais.” A sofística faz o jogo do totalitarismo: se nada é verdade, o que opor a suas mentiras? Se não há fatos, como acusá-lo de mascará-los, de deformá-los e o que opor à sua propaganda? Pois o totalitarismo, se pretende a verdade, não se pode impedir, cada vez que a verdade frustra sua expectativa, de inventar outra, mais dócil. Não me deterei nisso: esses fatos são bem conhecidos. O totalitarismo começa como dogmatismo (pretende que a verdade lhe dá razão e justifica seu poder) e acaba como sofística (chama de “verdade” o que justifica seu poder lhe dando razão)… Primeiro a “ciência”, depois a lavagem cerebral. Que se trata de falsas verdades ou de falsas ciências (como o biologismo nazista ou o historicismo stalinista), está muito claro; entretanto o essencial, no fundo, não está nisso. Um regime que se apoiasse numa ciência verdadeira – imaginemos por exemplo uma tirania dos médicos – nem por isso seria menos totalitário a partir do momento em que pretendesse governar em nome de suas verdades, porque a verdade nunca governa, nem diz o que deve ser feito, nem proibido. A verdade não obedece, lembrei citando Alain, e é por isso que ela é livre. Mas tampouco comanda, e é por isso que nós o somos. É verdade que morreremos: isso não condena a vida, nem justifica o assassinato. É verdade que mentimos, que somos egoístas, infiéis, ingratos… Isso não nos desculpa, nem inculpa os que, às vezes, são fiéis, generosos ou reconhecidos. Disjunção das ordens: o verdadeiro não é o bem; o bem não é o verdadeiro. Portanto, o conhecimento não poderia fazer as vezes de vontade, nem para os povos (nenhuma ciência, mesmo que verdadeira, poderia substituir a democracia), nem para os indivíduos (nenhuma ciência, mesmo se verdadeira, poderia fazer as vezes da moral). É aí que o totalitarismo fracassa, pelo menos teoricamente, porque a verdade, ao contrário do que pretende, não poderia lhe dar razão nem justificar seu poder. É certo, entretanto, que uma verdade não se vota, mas ela tampouco governa; portanto, qualquer governo pode ser submetido a um voto, e deve sê-lo. Longe de se dever, para ser tolerante, renunciar a amar a verdade, é, ao contrário, esse próprio amor – mas sem quimeras – que nos fornece nossas principais razões de o ser. A primeira delas é que amar a verdade, sobretudo nesses domínios, também é reconhecer que nunca a conhecemos absolutamente, nem com toda certeza. O problema da tolerância, como vimos, só se coloca nas questões de opinião. Ora, o que é uma opinião, senão uma crença incerta ou, em todo caso, sem outra certeza que não subjetiva? O católico pode muito bem, subjetivamente, estar certo da verdade do catolicismo. Mas, se ele é intelectualmente honesto (se ama a verdade mais que a certeza), deve reconhecer que é incapaz de convencer um protestante, um ateu ou um muçulmano, ainda que cultos, inteligentes e de boa-fé. Cada um, por mais convencido que possa estar de ter razão, deve pois admitir que não tem condições de prová-lo… A tolerância, como força prática (como virtude), funda-se assim em nossa fraqueza teórica, isto é, na incapacidade em que estamos de alcançar o absoluto. Foi o que viram Montaigne, Bayle, Voltaire: “É dar um preço muito alto a suas conjecturas”, dizia o primeiro, “assar um homem vivo por causa delas”; “a evidência é uma qualidade relativa” dizia o segundo; e o terceiro, como que insistindo: “O que é a tolerância? É o apanágio da humanidade. Somos todos feitos de fraquezas e de erros; perdoemo-nos reciprocamente nossas tolices, é esta a primeira lei da natureza.” É aí que a tolerância tem a ver com a humildade, ou antes, dela decorre, como esta da boa-fé: amar a verdade até o fim é também aceitar a dúvida em que ela resulta, para o homem. De novo Voltaire: “Devemos tolerar-nos mutuamente, porque somos todos fracos, inconseqüentes, sujeitos à mutabilidade, ao erro. Um caniço vergado pelo vento sobre a lama porventura dirá ao caniço vizinho, vergado em sentido contrário: ‘Rasteja a meu modo, miserável, ou farei um requerimento para que te arranquem e te queimem’?” Humildade e misericórdia andam juntas, e esse conjunto, no que se refere ao pensamento, conduz à tolerância. A segunda razão prende-se mais à política do que à moral, e mais aos limites do Estado do que do conhecimento. Ainda que tivesse acesso ao absoluto, o soberano não teria condições de impô-lo a ninguém, porque não se poderia forçar um indivíduo a pensar de maneira diferente da que pensa, nem a crer verdadeiro o que lhe parece falso. Foi o que viram Spinoza e Locke, e que, no século XX, a história dos diferentes totalitarismos confirma. Pode-se impedir um indivíduo de exprimir o que crê, mas não de pensá-lo. Ou então tem-se de suprimir o próprio pensamento, e enfraquecer assim o Estado… Não há inteligência sem liberdade de julgamento, nem sociedade próspera sem inteligência. Portanto, um Estado totalitário tem de se resignar à tolice ou à dissidência, à pobreza ou à crítica… A história recente dos países do Leste europeu mostra que esses escolhos, entre os quais o totalitarismo pode sem dúvida navegar por muito tempo, no entanto o condenam a um naufrágio tão imprevisível, em suas formas, quanto difícil, a mais ou menos longo prazo, a se evitar… A intolerância torna tolo, assim como a tolice torna intolerante. É uma sorte para nossas democracias, e talvez explique uma parte da sua força, que surpreendeu muitos, ou afinal a fraqueza dos Estados totalitários. Nem uma nem outra teriam deixado surpreso Spinoza, que fazia do totalitarismo esta descrição antecipada: “Suponhamos”, escreve, “que essa liberdade [de julgamento] possa ser comprimida e que seja possível manter os homens em tal dependência que não ousem proferir uma palavra, a não ser por prescrição do soberano; ainda assim este não conseguirá nunca que só tenham os pensamentos que ele quiser; e desse modo, por uma conseqüência necessária, os homens não deixariam de ter opiniões em desacordo com sua linguagem, e a boa-fé, esta primeira necessidade do Estado, se corromperia; o incentivo dado à detestável adulação e à perfídia traria o reinado da esperteza e da corrupção de todas as relações sociais…” Em suma, com o tempo, a intolerância do Estado (portanto, também o que chamamos de totalitarismo) não pode deixar de debilitá-lo, pela debilitação do vínculo social e da consciência de cada um. Num regime tolerante, ao contrário, a força do Estado constitui a liberdade de seus membros, assim como sua liberdade constitui sua força: “O que exige antes de tudo a segurança do Estado”, conclui Spinoza, é evidentemente que cada um submeta sua ação às leis do soberano (do povo, portanto, numa democracia), mas também “que, quanto ao mais, seja permitido a cada um pensar o que quer e dizer o que pensa”. O que é isso senão a laicidade? E o que é a laicidade, senão a tolerância instituída? A terceira razão é a que evoquei a princípio; mas ela talvez seja, em nosso universo espiritual, a mais recente e a menos comumente aceita: trata-se do divórcio (ou, digamos, da independência recíproca) entre a verdade e o valor, entre o verdadeiro e o bem. Se é a verdade que comanda, como acreditam Platão, Stálin ou João Paulo II, a única virtude é submeter-se a ela. E, uma vez que a verdade é a mesma para todos, todos devem submeter-se igualmente aos mesmos valores, às mesmas regras, aos mesmos imperativos: uma mesma verdade para todos, logo uma mesma moral, uma mesma política, uma mesma religião para todos! Fora da verdade não há salvação, e fora da Igreja ou do Partido, não há verdade… O dogmatismo prático, que pensa o valor como uma verdade, conduz assim à consciência tranqüila, à auto-suficiência, à rejeição ou ao desprezo do outro – à intolerância. Todos os que não se submetem à “verdade sobre o bem e sobre o mal moral”, escreve por exemplo João Paulo II, “verdade estabelecida pela ‘Lei divina’, norma universal e objetiva da moralidade”, todos estes, pois, vivem no pecado, e embora, é claro, devam ser lastimados e amados, não se poderia reconhecer seu direito de julgar de modo diferente: seria cair no subjetivismo, no relativismo ou no ceticismo, e esquecer com isso “que não há liberdade nem fora da verdade, nem contra ela”. Como a verdade, assim também a moral não depende de nós: “a verdade moral”, como diz João Paulo II, impõe-se a todos e não poderia depender nem das culturas, nem da história, nem de uma autonomia qualquer do homem ou da razão. Que verdade? Claro que a “verdade revelada”, tal como a Igreja, e só ela, a transmite! Façam o que fizerem todos os casais católicos que utilizam pílulas ou preservativos, todos os homossexuais, todos os teólogos modernos, isso em nada alterará o problema: “O fato de que certos crentes ajam sem seguir os ensinamentos do Magistério ou considerem, erroneamente, ser justa do ponto de vista moral uma conduta que seus pastores declararam contrária à Lei de Deus, não pode ser um argumento válido para refutar a verdade das normas morais ensinadas pela Igreja.” E tampouco o seria a consciência individual ou coletiva: “É a voz de Jesus Cristo, a voz da verdade sobre o bem e o mal que ouvimos na resposta da Igreja.” A verdade se impõe a todos, portanto também à religião (pois ela é a verdadeira religião), portanto também à moral (pois a moral “é fundada na verdade”). É uma filosofia de boneca russa: é preciso obedecer à verdade, logo a Deus, logo à Igreja, logo ao Papa… O ateísmo ou a apostasia, por exemplo, são pecados mortais, isto é, pecados que, salvo arrependimento, acarretam “a condenação eterna”. Eis, pois, seu servidor, sem falar de seus outros erros, que são inúmeros, já danado duas vezes… É o que João Paulo II chama de “a certeza reconfortante da lei cristã”. Veritatis terror! Não quero deter-me nessa encíclica, que não tem maior importância. Como as circunstâncias históricas tiram toda e qualquer plausibilidade (pelo menos no Ocidente e a curto ou médio prazo) de não sei que volta à inquisição ou à ordem moral, as posições da Igreja, ainda que intolerantes, devem é claro ser toleradas. Vimos que apenas a periculosidade de uma atitude (e não a tolerância ou a intolerância de que ela dá prova) devia determinar que tal atitude seja ou não tolerada: feliz época a nossa, e feliz país em que mesmo as Igrejas deixaram de ser perigosas! Já se foi o tempo em que podiam queimar Giordano Bruno, supliciar Calas ou guilhotinar (aos dezenove anos!) o cavaleiro de La Barre… De resto, só tomei essa encíclica como exemplo para mostrar que o dogmatismo prático sempre leva, ainda que de forma atenuada, à intolerância. Se os valores são verdadeiros, se são conhecidos, não se poderia nem discuti-los nem escolhê-los, e os que não compartilham os nossos estão, por conseguinte, errados – por isso não merecem outra tolerância além daquela que podemos ter, às vezes, para com os ignorantes ou os imbecis. Mas isso será ainda tolerância? Para quem reconhece que valor e verdade são duas ordens diferentes (esta ligada ao conhecimento, aquela ao desejo), há nesta disjunção, ao contrário, uma razão suplementar para ser tolerante: ainda que tivéssemos acesso a uma verdade absoluta, com efeito, isso não poderia obrigar todo o mundo a respeitar os mesmos valores, nem portanto a viver da mesma maneira. O conhecimento, que se refere ao ser, nada diz sobre o dever-ser: o conhecimento não julga, o conhecimento não comanda! A verdade se impõe a todos, decerto, mas não impõe nada. Ainda que Deus existisse, por que deveríamos aprová-lo sempre? E que direito teria eu, quer ele exista quer não, de impor meu desejo, minha vontade ou meus valores aos que não os compartilham? São necessárias leis comuns? Sem dúvida, mas apenas nos domínios que nos são comuns! Que me importam as esquisitices eróticas de fulano ou de beltrano, se são praticadas entre adultos que concordam com elas? Quanto às leis comuns, embora sejam obviamente necessárias (para impedir o pior, para proteger os fracos…), cabe à política e à cultura cuidar delas – e estas sempre são relativas, conflituais, evolutivas -, e não a uma verdade absoluta qualquer que se impusesse a nós e que, portanto, poderíamos legitimamente impor a outrem. A verdade é a mesma para todos, mas o desejo não, mas a vontade não. Não significa que nossos desejos e nossas vontades nunca possam nos aproximar, o que seria surpreendente, já que temos o mesmo corpo, no essencial, a mesma razão (a razão, se não é o todo da moral, nela representa, sem dúvida, um papel importante) e, cada vez mais, a mesma cultura… Esse encontro dos desejos, essa comunhão das vontades, essa aproximação das civilizações, quando ocorrem, não são o resultado de um conhecimento: são um fato da história, um fato do desejo, um fato de civilização. Que o cristianismo desempenhou nisso um papel de destaque, todos sabem; ele não desculpa a Inquisição, claro, mas a Inquisição também não poderia apagá-lo. “Ama e faz o que queres…” Podemos conservar essa moral do amor sem o dogmatismo da Revelação? Por que não? Temos necessidade de conhecer absolutamente a verdade para amá-la? Precisamos de um Deus para amar nosso próximo? Veritatis amor, humanitatis amor… Contra o esplendor da verdade (por que ela teria de ser esplêndida?), contra o peso dos dogmas e das Igrejas, a doçura da tolerância… Podemos nos indagar, para concluir, se esta palavra – tolerância – é de fato a que nos convém: há nela algo de condescendente, se não de desdenhoso, que incomoda. Lembrem-se da boutade de Claudel: “Tolerância? Há casas para isso!” Isso diz muito sobre Claudel e sobre a tolerância. Tolerar as opiniões do outro acaso já não é considerá-las inferiores ou incorretas? A rigor, só podemos tolerar aquilo que teríamos o direito de impedir: se as opiniões são livres, como devem ser, não dependem pois da tolerância! Daí um novo paradoxo da tolerância, que parece invalidar sua noção. Se as liberdades de crença, de opinião, de expressão e de culto são de direito, não podem ser toleradas, mas simplesmente respeitadas, protegidas, celebradas. Apenas “a insolência de um culto dominador”, já observava Condorcet, pôde “denominar tolerância, isto é, uma permissão dada por homens a outros homens”, o que deveria ser considerado ao contrário como o respeito por uma liberdade comum. Cem anos mais tarde, o Vocabulário de Lalande ainda atesta, no início deste século, numerosíssimas reticências. O respeito à liberdade religiosa “é muito mal chamado de tolerância”, escrevia por exemplo Renouvier, “pois é estrita justiça e obrigação inteira”. Reticência também em Louis Prat: “Não se deveria dizer tolerância, mas respeito; senão a dignidade moral é atingida… A palavra tolerância implica, com muita freqüência, em nossa língua, a idéia de polidez, às vezes de piedade, às vezes de indiferença; talvez por causa dela a idéia do respeito devido à liberdade leal de pensar seja falseada na maioria dos espíritos.” Reticência também em Émile Boutroux: “Não gosto dessa palavra, tolerância; falemos de respeito, de simpatia, de amor…” Todas essas observações são justificadas, mas nada puderam contra o uso. Noto de resto que o adjetivo respectueux [respeitoso], em francês, não evoca em absoluto o respeito à liberdade alheia, nem mesmo sua dignidade, mas antes uma espécie de deferência ou de consideração que podemos julgar suspeita, muitas vezes, e que não encontraria seu lugar num tratado das virtudes… Tolerante, ao contrário, impôs-se, na linguagem corrente como na filosófica, para designar a virtude que se opõe ao fanatismo, ao sectarismo, ao autoritarismo, em suma… à intolerância. Esse uso não me parece desprovido de razão: ele reflete, na própria virtude que a supera, a intolerância de cada um. A rigor, dizia eu, só se pode tolerar o que se teria o direito de impedir, de condenar, de proibir. Mas esse direito que nós não temos, quase sempre temos a sensação de tê-lo. Não temos razão de pensar o que pensamos? E, se temos razão, como os outros não estariam errados? E como a verdade poderia aceitar – a não ser por tolerância – a existência ou a continuidade do erro? O dogmatismo sempre renasce, ele nada mais é que um amor ilusório e egoísta da verdade. Por isso chamamos de tolerância o que, se fôssemos mais lúcidos, mais generosos, mais justos, deveria chamar-se respeito, de fato, ou simpatia, ou amor… Portanto, é a palavra que convém, pois o amor falta, pois a simpatia falta, pois o respeito falta. A palavra tolerância só nos incomoda porque – por uma vez! – não antecipa, ou não antecipa muito, o que somos. “Virtude menor”, dizia Jankélévitch. Porque ela se assemelha a nós. “Tolerar não é, evidentemente, um ideal”, já notava Abauzit, “não é um máximo, é um mínimo.” Claro, mas é melhor que nada ou que seu contrário! É evidente que mais valem o respeito ou o amor. Se a palavra tolerância se impôs, entretanto, é sem dúvida porque de amor ou de respeito todos se sentem muito pouco capazes, em se tratando de seus adversários – ora, é em relação a eles, primeiramente, que a tolerância age… “Esperando o belo dia em que a tolerância se incline ao amor”, conclui Jankélévitch, “diremos que a tolerância, a prosaica tolerância é aquilo que melhor podemos fazer! A tolerância – por menos exaltante que seja esta palavra – é, pois, uma solução passável; à espera de melhor, isto é, à espera de que os homens possam se amar, ou simplesmente se conhecer e se compreender, demo-nos por felizes com que eles comecem a se suportar. A tolerância é, pois, um momento provisório.” Que esse provisório é feito para durar, que claro. Se ele cessasse, seria de se temer que a barbárie, em vez do amor, lhe sucedesse! Pequena virtude, também ela, a tolerância talvez desempenhe, na vida coletiva, o mesmo papel da polidez na vida interpessoal: é apenas um começo, mas o é. Sem contar que às vezes é necessário tolerar o que não se quer nem respeitar nem amar. O irrespeito nem sempre é uma falta, longe disso, e certos ódios estão bem próximos de ser virtudes. Há, o intolerável como vimos, que cumpre combater. Mas há também o tolerável, que é contudo desprezível e detestável. A tolerância diz tudo isso, ou pelo menos o autoriza. Essa pequena virtude nos convém: ela está a nosso alcance, o que não é tão freqüente, e alguns de nossos adversários, parece-nos, não merecem muito mais… Como a simplicidade é a virtude dos sábios e a sabedoria, dos santos, assim a tolerância é sabedoria e virtude para aqueles que – todos nós – não são nem uma coisa nem outra.Pequena virtude, mas necessária. Pequena sabedoria, mas acessível. /André Comte-Sponville