sábado, 14 de março de 2009

A PUREZA !

De todas as virtudes a pureza, se é que é uma virtude, pode ser a mais difícil de apreender, de captar. No entanto, temos de experimentá-la, senão o que saberíamos do impuro? Mas é uma experiência a princípio estranha, e duvidosa. A pureza das meninas, ou de algumas delas, sempre me tocou profundamente. Como saber se era verdadeira ou fingida, ou antes, se não era uma impureza diferente da minha, que só a perturbava a tal ponto por sua diferença, como duas cores se realçam à proporção de seu contraste, decerto, mas nem por isso deixam de ser cores, tanto uma como a outra? Eu, que nada amei tanto quanto a pureza, que nada desejei tanto quanto o impuro, será que ignoro o que é a pureza ou o que são a pureza e o impuro? Por que não? Talvez valha para a pureza o mesmo que vale para o tempo, segundo santo Agostinho: se ninguém me pergunta o que ela é, eu sei; mas se me perguntam e eu quero explicar, não sei mais. A pureza é uma evidência e um mistério. Eu falava das meninas. O fato é que a pureza, pelo menos nos dias de hoje, se produz antes de tudo no registro sexual. Por diferença? Precisamos ver. As meninas em que penso, várias das quais iluminaram minha adolescência, não eram menos sexuadas do que as outras, é claro, nem menos desejáveis (às vezes eram até mais), nem mesmo, quem sabe, menos desejosas. Mas elas tinham a virtude – aí estamos -, ou pareciam tê-la, de habitar na clareza esse corpo sexuado e mortal, como luz na luz, como se nem o amor nem o sangue pudessem maculá-las. Aliás, como poderiam? É a pureza do vivo, e a própria vida. Aquilo batia nas veias como uma gargalhada. Outras meninas, com certeza, e outros o experimentaram, todos talvez, seduziam-me ao contrário por não sei que impureza sugerida. Elas pareciam habitar muito mais a noite do que o dia: detinham a luz, como fazem certos homens, ou antes a refletiam (o que os homens não sabem fazer), e no entanto enxergavam bem tanto nelas como em você. Pareciam viver em pé de igualdade com o desejo dos homens, essa violência, essa crueza, esse fascínio pelo obsceno ou belo obscuro, exatamente com o necessário de perversão alegre e com aquele nada de vulgaridade que atrai os homens ou os tranqüiliza… Mais tarde todas elas envelhecerão e se distinguirão menos. Ou então apenas pela quantidade de amor de que serão capazes: o amor nada tem a ver com a pureza, ou antes é a única pureza que vale. As mulheres sabem mais a esse respeito do que as mocinhas, é por isso que nos atemorizam mais. Voltemos, porém, à pureza. A palavra, em latim como em francês, tem antes de tudo um sentido material: puro é o que é limpo, sem mancha, sem mácula. A água pura é a água sem misturas, a água que é apenas água. Note-se que é, então, uma água morta, e isso já diz muito sobre a vida e sobre uma certa nostalgia da pureza. Tudo o que vive suja, tudo o que limpa mata. Assim, ponhamos cloro em nossas piscinas. A pureza é impossível: só temos escolha entre diferentes tipos de purezas, é o que se chama higiene. Como faríamos disso uma moral? Fala-se de purificação étnica na Sérvia: esse horror basta para condenar os que a reivindicam. Não há povos puros ou impuros. Todo povo é uma mistura, e todo organismo, e toda vida. A pureza – pelo menos essa pureza – está do lado da morte ou do nada. A água é pura quando é sem germes, sem cloro, sem calcário, sem sais minerais, sem nada além da água. É pois uma água que não existe nunca, ou apenas em nossos laboratórios. Água morta e mortificante (sem cheiro nem gosto!), e mortífera, se só bebêssemos dela. No entanto, só pura em seu nível. Os átomos de hidrogênio poderiam protestar contra essa mistura que lhes é imposta, essa impureza do oxigênio… E por que não o núcleo, em cada um deles, contra a impureza do elétron? Só o nada é puro; ora, o nada não é nada: o ser é uma mancha no infinito do vazio, e toda existência é impura. Sim. O fato é que todas as religiões, ou quase, deram-se essa distinção entre o que a lei impõe ou autoriza, que é puro, e o que ela proíbe ou sanciona, que é impuro. O sagrado é antes de tudo o que pode ser profanado, e talvez seja apenas isso. Inversamente, a pureza é o estado que permite aproximar-se das coisas sagradas sem as macular e sem se perder nelas. Daí todas as proibições, todos os tabus, todos os ritos de purificação… É a superfície, e é um começo. Seria ter uma visão bem curta reduzir tudo isso à higiene, à prudência, à profilaxia. Que as proibições alimentares, por exemplo no judaísmo, também possam ter esse papel, tudo bem. Mas se houvesse apenas isso, nossa dívida para com o povo judeu não seria o que ela é – enorme, decisiva, indelével para sempre -, e a dialética substituiria vantajosamente, como Nietzsche queria, a moral. Quem pode acreditar nisso? Será que isso foi tudo o que guardamos do monoteísmo? Será nossa única preocupação, nossa única exigência? A manutenção de nossa saúde? De nossa limpeza? De nossa integridade? Que bela coisa! Que belo ideal! Os verdadeiros mestres, evidentemente, sempre disseram o contrário. O essencial não está nos ritos, mas no que os ritos sugerem ou engendram. Trata-se de comer kasher ou não! O são não é o santo. O limpo não é o puro. Longe de devermos reduzir o ritual ao higiênico, conviria antes, um e outro, discernir o que os supera e, no fundo, os justifica. Na verdade, é o que acontece em toda religião viva. Aprende-se depressa a dar a essas prescrições externas um sentido sobretudo – se não exclusivamente – simbólico ou moral. O rito tem uma função muito mais pedagógica do que sanitária: a pureza cultual, como se diz, é um primeiro passo no sentido da pureza moral, ou mesmo de uma outra pureza, totalmente interna, perto da qual a própria moral pareceria redundante ou sórdida. A moral só vale para os culpados; a pureza, nos puros, é o que a substitui ou a dispensa. Dir-se-á que a moral é, portanto, mais necessária, e estarei de acordo; ou mesmo que essa pureza não passa de um mito, e não posso, certamente, provar o contrário. Não vamos dar, no entanto, toda essa colher de chá a Pascal e seus congêneres, a todos aqueles que querem nos encerrar na queda ou no pecado. A pureza não é o angelismo. Há uma pureza do corpo, uma inocência do corpo, e no próprio gozo: pura voluptas, dizia Lucrécio, o puro prazer, perto do qual a moral é que é obscena. Não sei como se arranjam os confessores. Sem dúvida eles renunciaram a interrogar, a julgar, a condenar. Sabem que a impureza estaria de seu lado, quase sempre, e que os amantes estão pouco ligando para a moral deles. Mas não vamos depressa nem longe demais. Todas as mulheres estupradas, quando ousam contar, revelam o sentimento de terem sido sujadas, maculadas, humilhadas. E quantas esposas, se dissessem a verdade, não confessariam que se submetem a contragosto à impureza importuna ou brutal do homem? A contragosto: está tudo dito. Apenas o coração é puro ou pode ser; apenas ele purifica. Nada é puro ou impuro por si. A mesma saliva faz a cusparada ou o beijo; o mesmo desejo faz o estupro ou o amor. Não é o sexo que é impuro: é a força, a coerção (Simone Weil: “o amor não exerce nem sofre a força; é essa a única pureza”), tudo o que humilha ou avilta, tudo o que profana, tudo o que rebaixa, tudo o que não tem respeito, doçura, consideração. A pureza, ao contrário, não está em não sei que ignorância ou ausência do desejo (seria uma doença, não uma virtude): ela está no desejo sem falta e sem violência, no desejo aceito, no desejo partilhado, no desejo que eleva e celebra! Sei que o desejo também se exalta, e às vezes até mais, na transgressão, na violência, na culpa. Pois bem: a pureza é o contrário dessa exaltação. É a doçura do desejo, a paz do desejo, a inocência do desejo. Veja-se como somos castos depois do amor, veja-se como somos puros, às vezes, no prazer. Ninguém é inocente nem culpado absolutamente: é o que tira a razão dos “depreciadores do corpo” como dizia Nietzsche, tanto quanto de seus adoradores demasiado ciosos ou satisfeitos. A pureza não é uma essência. A pureza não é um atributo, que teríamos ou não. A pureza não é absoluta, a pureza não é pura: a pureza é uma certa maneira de não ver o mal onde, de fato, ele não se encontra. O impuro vê o mal em toda parte, e tem prazer nele. O puro não vê o mal em parte alguma ou, antes, apenas onde ele se encontra, onde o sofre: no egoísmo, na crueza, na maldade… É impuro tudo o que se faz de má vontade, ou com vontade má. É por isso que somos impuros, quase sempre, e é por isso que a pureza é uma virtude: o eu só é puro quando está purificado de si. O ego suja tudo aquilo em que toca: “Exercer poder sobre”, escreve Simone Weil, “possuir, é macular.” Ao contrário, “amar puramente é aceitar a distância”, em outras palavras, a não-posse, a ausência de poder e de controle, a aceitação alegre e desinteressada. “Você será amado”, dizia Pavese a si mesmo em seu Diário, “no dia em que puder mostrar sua fraqueza sem que o outro se sirva dela para afirmar sua força.” Era querer ser amado puramente, em outras palavras, ser amado. Há o amor que toma, é o impuro. Há o amor que dá ou que contempla, é a pureza. Amar, amar de verdade, amar puramente não é tomar: amar é olhar, é aceitar, é dar e perder, é regozijar-nos com o que não podemos possuir, é regozijar-nos com o que nos falta (ou que faltaria se quiséssemos possuí-lo), com o que nos faz infinitamente pobres, e é o único bem, e é a única riqueza. Pobreza absoluta da mãe, à beira da cama do filho: ela não possui nada, pois ele é tudo e ela não o possui. “Meu tesouro”, ela murmura… e sente-se mais desprovida do que nunca. Pobreza do amante, pobreza do santo: puseram todo o seu bem no que não se pode possuir, no que não se pode consumir, fizeram-se reino e deserto para um deus ausente. Eles amam em pura perda, como se diz, e é o próprio amor, ou o único amor puro. Quem só amaria na esperança de um ganho, de um lucro, de uma vantagem? O egoísmo ainda é amor, decerto, mas é um amor impuro, e “a fonte de todo mal”, dizia Kant: ninguém faz o mal pelo mal, mas apenas por seu prazer, que é um bem. O que corrompe “a pureza dos móbeis”, como dizia também Kant, não é o corpo, nem sabe-se lá que vontade maligna (que quereria o mal pelo mal), mas “o caro eu”, com o qual não cessamos de nos chocar… Não, claro, que não tenhamos o direito de amar a nós mesmos: como poderíamos então (supondo-se que isso fosse possível) amar o próximo como a si mesmo? O eu não é odiável, ou só o é por egoísmo. O mal não está em amar a si, mas em amar somente a si, está em ser indiferente ao sofrimento do outro, a seu desejo, à sua liberdade, está em mostrar-se disposto a fazer mal ao outro para se fazer bem, em humilhá-lo para agradar a si, em querer desfrutá-lo em vez de amá-lo, em desfrutar em vez de se regozijar, portanto, ou em só se regozijar com seu próprio gozo e, também nesse caso, só amar a si… É a pureza primeira, e a única talvez. Não excesso de amor, mas falta de amor. Não é por acaso, nem apenas por pudicícia, que a sexualidade foi considerada o lugar privilegiado dessa impureza. Nela reina o que os escolásticos chamavam de amor de concupiscência (amar o outro para seu bem), que eles opunham ao amor de benevolência ou de amizade (amar o outro para o bem dele). Amar o outro como um objeto, pois, querer possuí-lo, consumi-lo, desfrutá-lo, como se gosta de uma carne ou de um vinho, em outras palavras, amar apenas para si: é Eros, o amor que toma ou que devora, e Eros é um deus egoísta. Ou amar o outro, verdadeiramente, como um sujeito, como uma pessoa, respeitá-lo, defendê-lo, ainda que contra o desejo que se tem dele: é Philia ou Ágape, o amor que dá e que protege, o amor de amizade, o amor de benevolência, o amor de caridade, se quisermos, o puro amor – aí estamos – e a única pureza, e o único deus. O que é o puro amor? Fénelon disse-o claramente: é o amor desinteressado, como o que temos por nossos amigos, ou deveríamos ter (Fénelon percebe que muitas amizades “nada mais são que um amor-próprio sutilmente disfarçado”, mas também que nem por isso deixamos de ter “essa idéia da amizade pura” e que só ela pode nos satisfazer: quem aceitaria ser amado, ou amar, apenas por interesse?), o amor “sem nenhuma esperança”, como ele também diz, o amor libertado de nós mesmos (“de sorte que nos esqueçamos de nós e que nos tenhamos por nada, para sermos todo dele”), em suma, o que são Bernardo chamava “um amor sem mácula nem mesclado de procura pessoal”: é o próprio amor e a pureza dos corações puros. É o momento de lembrar que a pureza não se manifesta apenas no registro sexual. Um artista, um militante, um cientista também podem ser puros, cada um em seu domínio. Ora, nesses três domínios, e quaisquer que sejam suas diferenças, o puro é aquele que dá prova de desinteresse, aquele que se dá por inteiro a uma causa, sem buscar nem o dinheiro nem a glória, aquele “que se esquece de si e que se tem por nada”, como dizia Fénelon, e isso confirma que a pureza, em todos esses casos, é o contrário do interesse, do egoísmo, da cobiça, de toda a sordidez do eu. Note-se de passagem que não se pode amar puramente o dinheiro, e isso já diz muito sobre o dinheiro, e sobre a pureza. Nada do que se pode possuir é puro. A pureza é pobreza, despojamento, abandono. Ela começa onde cessa o eu, aonde ele não vai, aonde ele se perde. Digamos numa fórmula: o amor puro é o contrário do amor-próprio. Se há um “puro prazer” na sexualidade, como pretendia Lucrécio e como sucede-nos experimentar, é porque a sexualidade às vezes se liberta, e nos liberta, dessa prisão do narcisismo, do egoísmo, da possessividade: também o prazer só é puro quando desinteressado, quando escapa do ego, e é por isso que na paixão ele nunca é puro, explica Lucrécio, e é por isso que “a Vênus vagabunda” (a liberdade sexual) ou a “Vênus marital” (o casal) são mais puras, muitas vezes, do que nossas loucas e exclusivas e devoradoras paixões… O ciúme bem mostra o quanto há de ódio ou de egoísmo no estado amoroso. Compreende-se que nenhum sábio nunca tenha se enganado a seu respeito (ainda que tenha sucumbido a ele!): não é o todo do amor, e é com freqüência sua forma mais violenta, como todos podemos experimentar, não é nem a mais pura nem a mais elevada. Veja-se o retrato que dele faz Platão no Fedro, antes de salvá-lo pela religião. Eros é um deus negro, como dizia Pieyre de Mandiargues, Eros é um deus ciumento, um deus possessivo, egoísta, concupiscente: Eros é um deus impuro. É mais fácil amar puramente nossos amigos ou nossos filhos: porque esperamos menos deles, porque os amamos o bastante para nada esperar deles, ou em todo caso para não submetermos nosso amor ao que esperamos deles. É o que Simone Weil chama de amor casto: “Todo desejo de gozo situa-se no futuro, no ilusório. Ao passo que, se apenas desejamos que um ser exista, ele existe: então que mais desejar? O ser amado é então nu e real, não velado pelo futuro imaginário… Assim, no amor, há castidade ou falta de castidade, conforme o desejo seja voltado ou não para o futuro.” Simone Weil, que não procura agradar, acrescenta o seguinte, que talvez choque alguns ingênuos, mas que dá o que pensar: “Nesse sentido e contanto que não seja voltado para uma pseudo-imortalidade concebida com base no futuro, o amor que temos pelos mortos é perfeitamente puro. Porque é o desejo de uma vida finita que não pode dar mais nada de novo. Desejamos que o morto tenha existido, e ele existiu.” É o luto perfeitamente bem-sucedido, quando nada mais há do que a doçura e a alegria da lembrança, do que a eterna verdade do que aconteceu, quando nada mais há do que amor e gratidão. Mas o presente é igualmente eterno; nesse sentido, poderíamos acrescentar, e contanto que não seja voltado para um pseudoconsumo concebido com base no futuro, o amor que temos pelos corpos, pelos corpos vivos, também pode, às vezes, ser perfeitamente puro: é o desejo de uma vida presente e perfeita. Desejamos que esse corpo exista, e ele existe. Que mais pedir? Sei que na maioria das vezes não é simples: a carência interfere, e a violência, e a avidez (quantos acreditam desejar uma mulher quando desejam apenas o orgasmo?), todo o obscuro do desejo, todo esse jogo confuso e perturbador em torno da transgressão, da profanação (o sagrado, dizia eu, é o que pode ser profanado: o corpo humano é sagrado), esse fascínio – exclusivamente humano! – pelo animal que há em si e no outro, esse jogo entre vida e morte, entre prazer e dor, entre sublime e indigno, em suma, tudo o que há de prontamente erótico, mas do que de amante (mais do que de agápico!), em dois corpos que se enfrentam ou se buscam… Mas isso não é impuro, ou não parece sê-lo, a não ser em referência a outra coisa: a animalidade só faz sonhar os humanos, a perversão só atrai pela lei que ela transgride, a indignidade só pelo sublime que ela insulta… Eros seria impossível, ou em todo caso nada teria de erótico, sem Philia ou Ágape (não haveria nada mais que a pulsão totalmente boba: que fastio!), e creio, com Freud, que o inverso também é verdadeiro. Que saberíamos do amor sem o desejo? E que valeria o desejo sem o amor? Sem Eros, não há Philia, não há Ágape. Mas, sem Philia ou Ágape, Eros não tem nenhum valor. Portanto, temos de nos habituar a habitá-los juntos, ou a habitar o abismo que os separa. É habitar o homem, que não é nem anjo nem animal, mas o encontro impossível e necessário entre os dois: “O baixo-ventre”, dizia Nietzsche, “é a causa de o homem ter certa dificuldade de se tomar por um deus.” Ainda bem: é somente graças a isso que ele é humano, e que assim permanece. A sexualidade é também uma lição de humildade, que não cansamos de aprofundar. Como a filosofia, a seu lado, parece loquaz e presunçosa! Como a religião parece tola! O corpo nos ensina mais a seu respeito que os livros, e os livros só valem desde que não se minta sobre o corpo. Pureza não é pudicícia. “A extrema pureza”, escreve Simone Weil, “pode contemplar o puro e o impuro; a impureza não pode nem um nem outro: o primeiro lhe dá medo, o segundo a absolve.” O puro, por sua vez, não tem medo de nada: ele sabe que “nada é impuro em si” ou (mas isso dá no mesmo) que “tudo é puro para os puros”. É nisso, como dizia ainda Simone Weil, que “a pureza é o poder de contemplar a sujeira”. É dissolvê-la (pois nada é impuro em si) na pureza do olhar: os amantes fazem amor à luz do dia, e a própria obscenidade é um sol. Resumamos: Ser puro é ser sem misturas, e é por isso que a pureza não existe ou não é humana. Mas a impureza em nós também não é absoluta, nem igual, nem definitiva: saber-se impuro supõe pelo menos uma certa idéia, ou um certo ideal, da pureza, de que a arte às vezes nos fala (veja-se Dinu Lipatti, em Mozart ou Bach, veja-se Vermeer, veja-se Éluard…) e de que a vida às vezes nos aproxima (veja-se o amor que você tem pelos seus filhos, por seus amigos, por seus mortos…). Essa pureza não é uma essência eterna; é o resultado de um trabalho de purificação – de sublimação, diria Freud -, pelo qual o amor advém libertando-se de si: o corpo é o cadinho, o desejo é a chama (que “consome tudo o que não é ouro puro”, dizia Fénelon), e o que resta – se resta alguma coisa – é, às vezes, e livre de toda esperança, “um ato de amor puro e plenamente desinteressado”. A pureza não é uma coisa, nem mesmo uma propriedade do real, mas uma certa modalidade do amor, ou não é nada. Uma virtude? Sem dúvida, ou o que permite que o amor seja uma virtude e faça as vezes de todas. Não se confunda, pois, a pureza com a continência, a pudicícia ou a castidade. Há pureza cada vez que o amor deixa de ser “mistura de interesse”, ou antes (pois a pureza nunca é absoluta), apenas na medida em que o amor dá prova de desinteresse: podemos amar puramente o verdadeiro, a justiça ou a beleza, e também, por que não, o homem ou a mulher que está presente, que se dá e cuja existência (muito mais que a posse!) basta para me satisfazer. A pureza é o amor sem cobiça. Assim, amamos a beleza de uma paisagem, a fragilidade de uma criança, a solidão de um amigo e, às vezes, até mesmo aquele ou aquela que todo nosso corpo continua, no entanto, a cobiçar. Não há pureza absoluta, mas também não há impureza total ou definitiva. Pode acontecer que o amor, o prazer ou a alegria nos libertem um pouco de nós mesmos, de nossa avidez, de nosso egoísmo, pode até ser (parece-nos ter às vezes experimentado ou pressentido isso) que o amor purifique o amor, até o ponto, talvez, de o sujeito se perder e se salvar, quando não há nada além da alegria, quando não há nada além do amor (o amor “livre de todo pertencimento”, diz Christian Bobin), quando não há nada além de tudo, e da pureza de tudo. “A beatitude”, dizia Spinoza, “não é o preço da virtude, mas a própria virtude; e essa plenitude não é obtida pela redução de nossos apetites sensuais, mas, ao contrário, é essa plenitude que torna possível a redução de nossos apetites sensuais.” É a última proposição da Ética, e isso mostra bem o caminho que disso nos separa. Mas esse caminho, ainda que fosse feito de torpezas, já é puro ao olhar puro. /André Comte-Sponville