A generosidade é a virtude do dom. Não se trata mais de “atribuir a cada um o que é seu”, como dizia Spinoza a propósito da justiça, mas o de lhe oferecer o que não é seu, o que é de quem oferece e que lhe falta. Que também se possa assim satisfazer a justiça, certamente é possível (dar a alguém o que, sem ainda lhe pertencer, sem mesmo lhe caber segundo a lei, lhe é devido de uma maneira ou de outra: por exemplo, dar de comer a quem tem fome), mas isso não é necessário nem essencial à generosidade. Daí o sentimento que às vezes se pode ter de que a justiça é mais importante, mais urgente, mais necessária, e de que ao lado dela a generosidade seria como que um luxo ou um suplemento de alma. “É preciso ser justo antes de ser generoso”, dizia Chamfort, “do mesmo que se tem camisas antes de se terem rendas.” Sem dúvida. Como as duas virtudes são de um registro diferente, não é seguro, porém, que o problema sempre se coloque nesses termos, nem com freqüência. Claro, justiça e generosidade dizem respeito, ambas, a nossas relações com outrem (principalmente, pelo menos: também podemos necessitar delas para nós mesmos); mas a generosidade é mais subjetiva, mais singular, mais afetiva, mais espontânea, ao passo que a justiça, mesmo quando aplicada, guarda em si algo mais objetivo, mais universal, mais intelectual ou mais refletido. A generosidade parece dever mais ao coração ou ao temperamento; a justiça, ao espírito ou à razão. Os direitos humanos, por exemplo, podem constituir objeto de uma declaração. A generosidade não: trata-se de agir, e não em função de determinado texto, de determinada lei, mas além de qualquer texto, além de qualquer lei, em todo caso humana, e unicamente de acordo com as exigências do amor, da moral ou da solidariedade. Detenho-me nesta última palavra. Antes de tudo, a solidariedade deveria figurar neste tratado, e talvez não seja inútil indicar brevemente por que renunciei a incluí-la, já que era necessário escolher (eu queria fazer apenas um pequeno tratado), e sobretudo porque a justiça e a generosidade pareceram-me poder substituí-la com vantagem. O que é a solidariedade? É um estado de fato antes de ser um dever; depois é um estado de alma (que sentimos ou não), antes de ser uma virtude ou um valor. O estado de fato é bem indicado pela etimologia: ser solidário é pertencer a um conjunto in solido, como se dizia em latim, isto é, “para o todo”. Assim devedores são ditos solidários, na linguagem jurídica, se cada um pode e deve responder pela totalidade da soma que tomaram emprestada coletivamente. Isso tem suas relações com a solidez, de que a palavra provém: um corpo sólido é um corpo em que todas as partes se sustentam (em que as moléculas, poderíamos dizer igualmente, são mais solidárias do que nos estados líquidos ou gasosos), de tal sorte que tudo o que acontece com uma acontece também com a outra ou repercute nela. Em suma, a solidariedade é antes de tudo o fato de uma coesão, de uma interdependência, de uma comunidade de interesses ou de destino. Ser solidários, nesse sentido, é pertencer a um mesmo conjunto e partilhar, conseqüentemente – quer se queira, quer não, quer se saiba, quer não – uma mesma história. Solidariedade objetiva, dir-se-á: é o que distingue o seixo dos grãos de areia, e uma sociedade de uma multidão. Como estado de alma, a solidariedade nada mais é que o sentimento ou a afirmação dessa interdependência. Solidariedade subjetiva: “Operários, estudantes, mesmo combate”, dizíamos em 1968, ou então “Somos todos judeus alemães”; em outras palavras, a vitória de uns será a vitória dos outros, ou vice-versa, e o que se faz a um de nós, mesmo que esse um seja diferente (por ser judeu, por ser alemão…), se faz a todos. É óbvio que não tenho nada contra esses sentimentos, que são nobres. Mas serão por isso virtudes? Ou, se há virtude neles, trata-se mesmo de solidariedade? Os empresários ou a polícia, em maio de 1968, não eram menos solidários entre si (e sem dúvida eram até mais) do que operários e estudantes, e, embora isso não condene nem uns nem outros, torna a moralidade do conjunto um tanto duvidosa ou suspeita. É raro que a virtude seja tão bem distribuída… De resto, se a solidariedade é comunidade de interesses (solidariedade subjetiva), do ponto de vista moral ela vale tanto quanto valem os interesses, que não valem nada. De fato, das duas uma: ou essa comunidade é real, efetiva, e então ao defender o outro nada mais faço do que defender a mim mesmo (o que, decerto, nada tem de censurável, mas é por demais vinculado ao egoísmo para ser à moral); ou essa comunidade é ilusória, formal ou ideal, e então se luto pelo outro já não se trata de solidariedade (pois meu interesse não está em jogo), mas de justiça (se o outro é oprimido, lesado, espoliado…) ou de generosidade (se não o é, mas simplesmente infortunado ou fraco). Em suma, a solidariedade é demasiado interessada ou demasiado ilusória para ser uma virtude. Nada mais é que egoísmo bem entendido ou generosidade mal entendida. Isso não impede que ela seja um valor, mas um valor que vale, sobretudo, na medida em que escapa ao encolhimento do eu, ao egoísmo estreito ou limitado, digamos, ao solipsismo ético. É muito mais a ausência de um defeito do que uma qualidade. Dou como prova que a língua resiste, apesar do mau uso que dela fazem os políticos, a qualquer tentativa de moralizar ou absolutizar a solidariedade. Se digo de alguém: “É justo, é generoso, é corajoso, é tolerante, é sincero e doce…”, todos compreendem que estou enunciando suas virtudes, que dele fazem um homem moralmente estimável, ou mesmo admirável. Se acrescento: “É solidário”, todos, diante desse uso intransitivo, ficam surpresos e provavelmente me perguntarão: “Solidário… com quem?” O mau uso que se faz dessa palavra hoje em dia me parece indicar, sobretudo, a incapacidade em que nos encontramos, com freqüência, de utilizar as palavras que conviriam e que nos assustam. Solidariedade, observam os lexicógrafos, tornou-se “no vocabulário sociopolítico um substituto prudente de igualdade”, bem como, eu acrescentaria, de justiça ou de generosidade. Mas que importa essa prudência, que nada mais é que timidez ou má-fé? Alguém acha que, suprimindo-se essas palavras, se tornará mais aceitável a falta daquilo – as virtudes – que elas designam? Alguém imagina que uma comunidade de interesses possa fazer as vezes delas? Triste época, que suprime as grandes palavras para não ver nada mais que sua própria pequenez! Sendo este um tratado das virtudes, e não um dicionário de idéias prontas, deixei, pois, a solidariedade no universo que lhe é próprio, o universo dos interesses convergentes ou opostos, dos diferentes corporativismos, ainda que fossem planetários, dos lobbies de todo tipo, ainda que fossem legítimos. Não acredito que sejamos todos solidários, isto é, todos interdependentes. Em que sua morte me torna menos vivo? Em que sua pobreza me torna menos rico? Não só a miséria do Terceiro Mundo não é prejudicial à riqueza do Ocidente, como esta só é possível, direta ou indiretamente, graças àquela, que ela explora ou acarreta. E o fato de habitarmos todos a mesma Terra, de sermos, pois, ecologicamente solidários, não impede que sejamos também, e mais ainda, economicamente concorrentes. Não venhamos com histórias. Não é de solidariedade que a África ou a América do Sul necessitam, mas de justiça e de generosidade! Quanto a pensar que os que têm trabalho, em nossos países, seriam solidários com os que não o têm, basta olhar o que fazem concretamente os sindicatos, em cada ramo de atividade, para constatar que a defesa dos interesses na verdade só vale para os interesses comuns e que nenhuma solidariedade objetiva (nem, por conseguinte, subjetiva, pois esta só se distingue da generosidade graças àquela) bastará evidentemente para resolver o problema do desemprego, nem para empreender seriamente sua solução. Mais uma vez, não é de solidariedade que se trata (pode ser que desempregados e assalariados tenham interesses divergentes ou mesmo opostos), mas de justiça e de generosidade. Pelo menos se considerarmos o problema, como convém neste pequeno livro, em seu aspecto moral ou ético. É dizer pouco afirmar que esse aspecto não é tudo; nem a política nem a economia poderiam reduzir-se a ele, nem mesmo, absolutamente, submeter-se a ele. Mas o fato de não ser tudo não significa que não seja nada. A moral só conta na medida em que queremos. É por isso que ela conta pouco, e um pouco. Mas voltemos à generosidade. Que a solidariedade pode motivá-la, suscitá-la, reforçá-la, não há dúvida. Mas ela só é verdadeiramente generosa desde que vá além do interesse, ainda que bem compreendido, ainda que partilhado – logo, contanto que vá além da solidariedade! Se fosse de fato de meu interesse ajudar, por exemplo, as crianças do Terceiro Mundo, não precisaria ser generoso para fazê-lo. Bastaria ser lúcido e prudente. “Combater a fome para salvar a paz”, dizia um movimento católico na década de 60. Aquilo chocava nossa juventude e nossa generosidade, que achavam sórdida essa barganha. Estávamos errados? Não sei. O caso é que, se fosse de fato nosso interesse, faríamos essa barganha, a não ser que fôssemos uns idiotas, sem que precisássemos, para tanto, ser generosos – e então a teríamos feito efetivamente! Não a fazermos, ou fazermos tão pouco, basta para provar que a nossos olhos este não é nosso interesse verdadeiro, que somos, pois, uns hipócritas quando pretendemos o contrário, o que não prova de maneira nenhuma que nossos olhos são ruins ou que nos falta lucidez. O coração é que é mau, pois é egoísta; a generosidade, muito mais que a lucidez, é que nos falta. Sem querer reduzir tudo a uma questão de dinheiro, pois se pode dar outra coisa, não omitamos, porém, que o dinheiro tem o mérito, e até serve para isso, de ser quantificável. Assim, ele autoriza, por exemplo, esta pergunta: que porcentagem de sua renda você consagra a ajudar os mais pobres ou mais infelizes que você? Devem-se deixar de lado os impostos, pois não são voluntários; e a família ou os amigos muito próximos, pois o amor, muito mais do que a generosidade, basta para explicar o que fazemos por eles sem deixar, por isso (pois sua felicidade é nossa felicidade), de o fazer também por nós… Estou simplificando um pouco, até demais. Tratando-se dos impostos, por exemplo, pode ser um ato de generosidade, quando se faz parte das classes média ou abastada, votar num partido político que anunciou sua firme intenção de aumentá-los. Mas a coisa é tão rara que essa generosidade tem pouquíssima ocasião de se manifestar; e os partidos, que só sabem anunciar diminuição dos impostos, mostram com isso o crédito que dão a nossa generosidade! Julgam-me pessimista; mas quem não vê que os homens políticos o são muito mais, não obstante o que dizem, e por razões muito sólidas? Quanto à família ou aos amigos íntimos, dá-se mais ou menos a mesma coisa. É simplificar excessivamente não querer ver nenhuma generosidade possível ou necessária em relação a eles. Se bem que a felicidade de meus filhos constitua a minha, ou a condicione, nem por isso deixa de acontecer que seus desejos se oponham aos meus, suas brincadeiras a meu trabalho, seu entusiasmo a meu cansaço… são oportunidades de dar prova, ou não, de generosidade em relação a eles! Mas não é essa aqui minha intenção. Eu só queria colocar a questão de dinheiro com a maior nitidez e, para isso, globalizar – é preciso – os orçamentos familiares. Eis que, portanto, voltamos ao ponto: que porcentagem de sua renda familiar você consagra a despesas que se possam chamar de generosidade, em outras palavras, a uma felicidade diferente da sua ou de seus íntimos? Cada qual responderá por sua conta. Imagino que estaremos quase todos abaixo dos 10%, e muitas vezes, faça o cálculo, abaixo de 1%… Certo, o dinheiro não é tudo. Mas por que milagre seríamos mais generosos nos domínios não financeiros ou não quantificáveis? Por que teríamos o coração mais aberto do que a carteira? O inverso é mais verossímil. Como saber se o pouco que damos é generosidade, de fato, ou se é o preço de nosso conforto moral, o precinho de nossa conscienciazinha tranqüila? Resumindo, a generosidade só é uma virtude tão grande e tão gabada porque é muito fraca em cada um, porque o egoísmo é mais forte sempre, porque a generosidade só brilha, na maioria das vezes, por sua ausência… “Como o coração do homem é oco e cheio de lixo”, dizia Pascal. Porque, quase sempre, só está cheio de si mesmo. Mas deve-se distinguir, como faço, ou mesmo opor, amor e generosidade? “Claro, a generosidade pode não ser amante”, reconhece Jankélévitch, “mas o amor é quase necessariamente generoso, pelo menos em relação ao amado e enquanto ama.” Sem se reduzir ao amor, a generosidade tenderia pois, “em seu mais extremo ápice”, a se confundir com ele: “Pois, se é possível dar sem amar, é por assim dizer impossível amar sem dar.” Que seja. Mas trata-se então de amor ou de generosidade? É uma questão de definição, e não vou brigar por causa de palavras. No entanto, a idéia de me sentir generoso em relação a meus filhos, ou mesmo de dever sê-lo, nunca me ocorreu. Há aqui amor demais, e angústia demais, para me deixar iludir. O que você faz por eles faz por você também. E para que precisa da virtude para isso? Basta o amor, e que amor! Como é que amo tanto meus filhos e tão pouco os filhos dos outros? É que meus filhos são meus, justamente, e eu me amo através deles… Generosidade? Que nada: apenas egoísmo dilatado, transitivo, familiar. Quanto ao outro amor, o que liberado do ego, o dos santos ou dos bem-aventurados, também não tenho muita certeza de que a generosidade nos ensine grande coisa a respeito dele, nem ele a respeito dela. Não vale para a generosidade o mesmo que para a justiça? O amor não as ultrapassa, uma e outra, muito mais do que está submetido a elas? Dar, quando se ama, é dar prova de generosidade ou de amor? Mesmo os amantes não se enganam quanto a isso. Uma mulher manteúda pode falar da generosidade de seus clientes ou protetores. Mas e uma mulher amada? Quanto aos santos… Cristo era generoso? Será essa a palavra que convém? Duvido muito, e por sinal registro que essa virtude não é muito evocada na tradição cristã, por exemplo, em santo Agostinho ou em santo Tomás, como também não era, diga-se de passagem, nos gregos ou nos latinos. Quem sabe não é apenas uma questão de vocabulário? A palavra generositas existia em latim, mas para designar antes a excelência de uma linhagem (gens) ou de um temperamento. Podia no entanto, como às vezes em Cícero, traduzir a megalopsuchia dos gregos (grandeza de alma), mais simplesmente que a pomposa magnanimitas, que é seu decalque erudito. Isso é verdade sobretudo em francês: magnanimité [magnanimidade] praticamente não saiu das escolas; é générosité [generosidade], sem dúvida, que melhor diz o que a grandeza pode ter de propriamente moral e em que, de fato, ela é então uma virtude. Assim é em Corneille ou, voltaremos a ele, em Descartes. Na linguagem contemporânea, todavia, a grandeza conta menos que o dom, ou só é generosa por sua facilidade em dar. A generosidade aparece então no cruzamento de duas virtudes gregas, que são a magnanimidade e a liberalidade. O magnânimo não é nem vaidoso nem baixo, o liberal não é nem avaro nem pródigo, por isso são sempre generosos, quando não se identificam. Mas isso ainda não é o amor e não faz as vezes dele. A generosidade é a virtude do dom, dizia eu. Dom de dinheiro (pelo qual tem a ver com a liberalidade), dom de si (pelo qual tem a ver com a magnanimidade, ou mesmo com o sacrifício). Mas só podemos dar o que possuímos e somente com a condição de não sermos possuídos. Nisso a generosidade é indissociável de uma forma de liberdade ou de domínio de si que será, em Descartes, o essencial de seu conteúdo. De que se trata? De uma paixão e, ao mesmo tempo, de uma virtude. A definição é dada num artigo famoso do Tratado das paixões, que convém citar integralmente: Creio assim que a verdadeira generosidade, que faz um homem se estimar ao mais alto grau que ele pode legitimamente estimar-se, consiste, apenas, parte em ele saber que não há nada que lhe pertença verdadeiramente além dessa livre disposição de suas vontades, nem por que ele deva ser elogiado ou censurado, a não ser por usá-la bem ou mal; parte em ele sentir em si uma firme e constante resolução de bem utilizá-la, isto é, nunca carecer de vontade para empreender e executar todas as coisas que julgar serem as melhores. O que é seguir perfeitamente a virtude. A redação é um tanto laboriosa, mas o sentido é claro. A generosidade é ao mesmo tempo consciência de sua própria liberdade (ou de si mesmo como livre e responsável) e firme resolução de bem usá-la. Consciência e confiança, pois: consciência de ser livre, confiança no uso que se fará disso. É por isso que a generosidade produz auto-estima, que é muito mais conseqüência dela do que seu princípio (distingue a generosidade cartesiana da magnanimidade aristotélica). O princípio é a vontade e nada mais que ela: ser generoso é saber-se livre para agir bem e querer-se assim. Vontade sempre necessária, para Descartes, e sempre suficiente, se efetiva. O homem generoso não é prisioneiro de seus afetos, nem de si; ao contrário, é senhor de si e, por isso, não tem desculpas nem as procura. A vontade lhe basta. A virtude lhe basta. Nisso coincide com a generosidade no sentido comum do termo, explica-o o artigo 156: “Os que são generosos dessa maneira são naturalmente levados a fazer grandes coisas, e todavia a não empreender nada de que não se sintam capazes. E por não estimarem nada maior do que fazer o bem aos outros homens e desprezar seu próprio interesse, por causa disso são sempre perfeitamente corteses, afáveis e oficiosos [serviçais] para com todos. E além disso são inteiramente senhores de suas paixões, particularmente dos desejos, do ciúme e da inveja…” A generosidade é o contrário do egoísmo, como a magnanimidade o é da mesquinharia. Essas duas virtudes são uma só e mesma coisa, assim como esses dois defeitos. O que há de mais mesquinho que o eu? O que há de mais sórdido do que o egoísmo? Ser generoso é ser livre de si, de suas pequenas covardias, de suas pequenas posses, de suas pequenas cóleras, de seus pequenos ciúmes… Descartes via nisso não apenas o princípio de toda virtude, mas o bem soberano, para cada um, o qual consiste apenas, dizia ele, “numa firme vontade de agir bem e no contentamento que ela produz”. Felicidade generosa, que reconcilia, dizia ele ainda, “as duas opiniões mais contrárias e mais célebres dos antigos”, a saber, a dos epicuristas (para os quais o bem soberano é o prazer) e a dos estóicos (para os quais é a virtude). O Jardim e o Pórtico, graças à generosidade, finalmente se encontram. Que virtude é mais agradável, que prazer mais virtuoso, do que desfrutar sua própria e excelente vontade? Onde encontramos a grandeza de alma: ser generoso é ser livre, e é esta a única grandeza verdadeira. Quanto a saber o que é feito dessa liberdade, é outra questão, mais metafísica do que moral, da qual a generosidade não depende nem um pouco. Quantos avaros acreditaram no livre-arbítrio? Quantos heróis não acreditaram? Ser generoso é ser capaz de querer, explica Descartes, e portanto de dar, de fato, quando tantos outros não sabem o que desejar, o que pedir, o que pegar… Vontade livre? Sem dúvida, pois ela quer o que quer! Quanto a saber se ela teria podido querer outra coisa, e mesmo se essa questão tem sentido (como poderíamos querer outra coisa que não a que queremos?) é um problema de que já tratei suficientemente em outro lugar, e que não tem seu lugar num tratado das virtudes. Seja uma vontade determinada ou não, seja ela necessária ou contingente (seja livre no sentido de Epicteto ou no de Descartes), ela não deixa de se confrontar com as mesquinharias do eu, e só ela, fora a graça ou o amor, é capaz de vencê-las. A generosidade é esse triunfo, quando a vontade é sua causa. Poder-se-ia preferir, é claro, que o amor bastasse. Mas, se ele bastasse, teríamos necessidade de ser generosos? O amor não está em nosso poder, nem pode estar. Quem escolhe amar? O que pode a vontade sobre um sentimento? O amor não se comanda; a generosidade sim: basta querer. O amor não depende de nós, é o maior mistério, por isso escapa às virtudes, por isso é uma graça, e a única. A generosidade depende dele, por isso é uma virtude, por isso se distingue do amor, inclusive nesse gesto do dom pelo qual, no entanto, ela se parece com ele. Ser generoso seria, pois, dar sem amar? Sim, se é verdade que o amor dá sem precisar para tanto ser generoso! Que mãe se sente generosa por alimentar seus filhos? Que pai, por cobri-los de presentes? Eles se sentiriam antes egoístas por fazerem tanto pelos filhos (por amor? sim, mas o amor não desculpa tudo) e tão pouco pelos dos outros, ainda que infinitamente mais infelizes ou mais desprovidos que os seus… Dar, quando se ama, está ao alcance de qualquer um. Não é virtude, é graça irradiante, é plenitude de existência ou de alegria, é efusão feliz, é facilidade transbordante. Será mesmo dar, já que não se perde nada? A comunidade do amor torna todas as coisas comuns; como poderíamos nela dar prova de generosidade? Amigos de verdade, observava Montaigne, “não podem se emprestar nem se dar nada”, pois tudo é “comum entre eles”, tal como as leis, dizia ele, “proíbem as doações entre o marido e a mulher, querendo inferir com isso que tudo deve ser de cada um e que eles não têm nada a dividir e partir juntos [compartilhar]”. Como dariam entre si prova de generosidade? Que as leis mudaram, eu sei e me regozijo, pois os casais devem sobreviver tão freqüentemente ao amor, ou os indivíduos aos casais. Mas terá também o amor mudado a tal ponto, e a amizade, que necessitemos sempre de generosidade? “Sendo a união de tais amigos verdadeiramente perfeita”, escrevia ainda Montaigne, “ela lhes faz perder o sentimento desses deveres, e odiar e expulsar de entre eles estas palavras de divisão e de diferença: benefício, obrigação, reconhecimento, súplica, agradecimentos, e semelhantes…” Quem não vê que a generosidade faz parte delas e que uma amizade verdadeira nada tem a ver com ela? O que eu poderia lhe dar, uma vez que tudo o que é meu é dele? Objetar-me-ão, e com razão, que isso só vale para as amizades perfeitas, como as que viveu Montaigne, ao que parece – e estas são tão raras… Mas é me dar razão, pelo menos quanto ao essencial: só precisamos de generosidade na falta de amor, e é por isso que, quase sempre, precisamos. A generosidade, como a maioria das virtudes, obedece a seu modo ao mandamento evangélico. Amar ao próximo como a si mesmo? Se pudéssemos, para que a generosidade? Só precisaríamos dela justamente com nós mesmos (que só precisamos, às vezes, quando já não conseguimos nem mesmo nos amar). E para que nos mandar amar, se não podemos? Só se pode ordenar uma ação. Portanto, não de trata de amar, mas de agir como se amássemos – com o próximo como com nós mesmos, com um desconhecido como com nós mesmos. Não, é claro, no caso das paixões ou da afetividade singular, que não são transferíveis. Mas no caso das ações, que o são. Por exemplo, se você amasse esse estranho que sofre ou que tem fome, você ficaria sem fazer nada para ajudá-lo? Se você amasse esse miserável, você lhe recusaria o socorro que ele lhe pede? Se você o amasse como a você mesmo, o que faria? A resposta, que é de uma simplicidade cruel e louca, é a resposta moral e o que exige – ou exigiria – a virtude. O amor não precisa de generosidade, mas só ele infelizmente pode prescindir dela sem egoísmo e sem erro. Nós amamos o amor e não sabemos amar. A moral nasce desse amor e dessa impotência. Existe aí uma imitação das afeições, como poderia dizer Spinoza, mas na qual cada um imita, sobretudo, as que lhe faltam…
Como a polidez é uma aparência de virtude (ser polido é conduzir-se como se se fosse virtuoso), toda virtude, sem dúvida – em todo caso toda virtude moral -, é uma aparência de amor: ser virtuoso é agir como se se amasse. Como não somos virtuosos, fingimos ser, é o que se chama polidez. Como não sabemos amar, fingimos amar, é o que se chama moral. E os filhos imitam os pais, que imitam os seus… O mundo é um teatro, a vida é uma comédia, em que, no entanto, nem todos os papéis se equivalem, e nem todos os atores. Sabedoria de Shakespeare: a moral é uma comédia, talvez, mas não há boa comédia sem moral. O que há de mais sério, de mais real, do que rir ou chorar? Fingimos, mas não é um jogo: as próprias regras que respeitamos nos constituem, para o melhor e para o pior, muito mais do que nos divertem. Representamos um papel, se quisermos, mas é o nosso, é nossa vida, é nossa história. Não há nada de arbitrário ou de contingente nisso. Nosso corpo nos leva a ele, pelo desejo; nossa infância nos leva a ele, pelo amor e pela lei. Porque o desejo quer primeiro tomar. Porque o amor quer primeiro consumir, devorar primeiro, possuir primeiro. Mas a lei o proíbe. Mas o amor o proíbe, o amor que dá e que protege. Freud está menos distante do que ele mesmo imaginava, talvez, de uma certa inspiração evangélica. Mamamos o amor ao mesmo tempo em que o leite, o bastante para saber que só ele podia nos satisfazer (que “sem amor não somos nada”, como diz a canção) e que, portanto, ele nunca deixaria de nos fazer falta… Daí essas virtudes, às vezes, mesmo aproximadas, mesmo fracas, que são a homenagem que prestamos ao amor, quando ele está ausente, e o indício de que ele continua a valer, como exigência, mesmo quando falta, de que reina, se quisermos, onde não governa – ou ainda de que comanda (é o que se chama um valor) mesmo em sua ausência! O amor nos falta, dizia eu, e é essa, muitas vezes, a mais segura experiência que temos dele. Fizemos dessa falta uma força, ou várias, e é a isso que chamamos virtudes. Isso vale por exemplo, e em especial, para a generosidade. Ela nasce como exigência quando o amor falta, claro, mas não totalmente, pois pelo menos amamos o amor (“nondum amabam et amare amabam”: não saímos disso), suficientemente em todo caso para que continue a valer, como modelo ou como mandamento, quando, como sentimento, ele fracassa em triunfar ou em se expandir plenamente. E visto que daríamos, se amássemos, a generosidade nos convida, na falta do amor, a dar exatamente aos que não amamos, tanto mais por necessitarem mais ou por estarmos mais bem situados para ajudá-los. Sim, quando o amor não nos pode guiar, por estar ausente, que a urgência e a proximidade o façam! É o que se chama erradamente de caridade (pois a verdadeira caridade é amor, e a falsa, condescendência ou compaixão) e que se devia chamar de generosidade, pois depende de fato de nós, só de nós, pois é livre nesse sentido, pois é – contra a escravidão dos instintos, das posses e dos medos – a própria liberdade, em espírito e em ato! Seria melhor o amor, é claro, e é por isso que a moral não é tudo, nem mesmo o essencial. Mas a generosidade é melhor, porém, que o egoísmo, e a moral que a frouxidão. Não, é claro, que a generosidade seja o contrário do egoísmo, se entendermos com isso que ela lhe escaparia totalmente. Como seria possível? Por que seria necessário? “Como a razão não pede nada que seja contra a natureza”, escreve Spinoza, “ela pede, pois, que cada um ame a si mesmo, procure o útil próprio, o que é realmente útil para ele, deseje tudo o que leva realmente o homem a uma perfeição maior e, falando de modo absoluto, que cada um se esforce por conservar seu ser, tanto quanto este está em cada um.” Não saímos do princípio do prazer, pois não saímos da realidade. Mas isso não quer dizer que todos os prazeres se equivalem. A alegria decide. O amor decide. O que é então a generosidade? “Um desejo”, responde Spinoza, “pelo qual um indivíduo, a partir do simples mandamento da razão, se esforça por assistir os outros homens e estabelecer entre estes e ele um vínculo de amizade.” A generosidade é, nisso, com a firmeza ou a coragem (animositas), uma das duas ocorrências da força de alma: “As ações que visam apenas a utilidade do agente, refiro-as à firmeza”, explica Spinoza, “e as que visam igualmente a utilidade de outrem, à generosidade.” Portanto, há utilidade nos dois casos, utilidade do próprio sujeito. Não saímos do ego, ou só saímos dele desde que assumamos primeiro nossa exigência própria, que é a de perseverar em nosso ser, o mais possível, o melhor possível, em outras palavras, “agir e viver”. Que isso nem sempre é realizável, que às vezes é preciso morrer, e até que o é necessariamente, pois o universo é o mais forte, todos sabemos e Spinoza não desmente. Mas aquele que prefere morrer a trair, morrer a renunciar, morrer a abandonar, é ainda seu ser que ele está afirmando, é a potência vital – seu conatus – que ele opõe à morte ou à ignomínia, e vitoriosamente enquanto vive, e utilmente enquanto combate ou resiste. Que a virtude é afirmação de si e busca do útil próprio, Spinoza não cessa de repetir; mas também Cristo, mesmo na cruz, é o melhor exemplo disso. O útil próprio não é o maior conforto, nem sempre a vida mais longa: é a vida mais livre, é a vida mais verdadeira. Não se trata de viver sempre, pois não se pode, mas de viver bem. Mas como, sem coragem e sem generosidade? Ter-se-á notado que a generosidade é definida como desejo, não como alegria, o que basta para distingui-la do amor ou, como diz também Spinoza, da caridade. Que a alegria possa nascer em acréscimo, e mesmo que ela seja expressamente visada, é mais que claro, pois a amizade (a que tende à generosidade) nada mais é que alegria partilhada. Mas, precisamente, a alegria ou o amor podem nascer da generosidade, e não se reduzir a ela ou com ela se confundir. Para fazer bem a quem se ama, não é preciso o “mandamento da razão”, nem, pois, da generosidade: basta o amor, basta a alegria! Mas, quando o amor falta, quando a alegria falta ou é muito fraca (e ainda que não interviesse a compaixão, que nos torna benevolentes), a razão subsiste, e ela nos ensina – ela, que não tem ego e, por isso, nos liberta do egoísmo – que “nada é mais útil ao homem do que o homem”, que todo ódio é ruim, enfim que “quem é conduzido pela razão deseja para os outros o que deseja para si mesmo”. É aí que a utilidade do agente encontra a de outrem e que o desejo se faz generoso: trata-se de combater o ódio, a cólera, o desprezo ou a inveja – que não passam de tristezas e de causas de tristezas – pelo amor, quando ele existe, ou pela generosidade, quando ele não existe. Pode ser que aqui (tratando-se da distinção entre o amor e a generosidade) eu force um pouco o texto, que é equívoco. Mas não seu espírito, que é claro: “o ódio deve ser vencido pelo amor”, a tristeza pela alegria, e é função da generosidade – como desejo, como virtude – tender a isso ou esforçar-se para isso. A generosidade é desejo de amor, desejo de alegria e de partilha, e a própria alegria, pois o generoso se regozija com esse desejo e ama pelo menos nele esse amor do amor. Lembramo-nos da forte definição de Spinoza: “O amor é uma alegria que acompanha a idéia de uma causa externa.” Amar o amor, por conseguinte, é regozijar-se com a idéia de que o amor existe, ou existirá; mas é também esforçar-se por fazê-lo advir, e é a própria generosidade: ser generoso, diria eu, é esforçar-se por amar e agir em conseqüência disso. A generosidade se opõe assim ao ódio (e ao desprezo, e à inveja, e à cólera, sem dúvida também à indiferença…), assim como a coragem se opõe ao medo, ou, em geral, assim como a firmeza de alma se opõe à impotência e a liberdade à escravidão. Ainda não é a salvação, pois isso não nos dá nem a beatitude, nem a eternidade; mas essas virtudes nem por isso deixam de ser para nós “as primeiras dentre as coisas”. Estão ligadas ao que Spinoza chama “uma conduta reta da vida”, “regras de vida”, “preceitos da razão”, ou, simplesmente, “moralidade”. Porque não é verdade que se deva viver além do bem e do mal, pois não é possível. Nem, contudo, que a moral dos tristes ou dos censores possa nos convir. O que intervém aqui é uma moral da generosidade, que conduz a uma ética do amor. “Agir bem e manter-se alegre”, dizia Spinoza; o amor é a finalidade, a generosidade é o caminho. A generosidade, dizia Hume, se fosse absoluta e universal, nos dispensaria da justiça; e vimos que isso, de fato, podia se conceber. É claro, por outro lado, que a justiça, mesmo consumada, não poderia nos dispensar da generosidade, por isso esta última é socialmente menos necessária, e humanamente, parece-me, mais preciosa. Para que essas comparações, perguntarão, já que somos tão pouco capazes de uma e da outra? É que esse pouco, apesar de tudo, não é nada, ele nos sensibiliza quanto à sua pouquidão e às vezes nos dá desejo de aumentá-la… Qual virtude não é antes de tudo, mesmo pequenamente, um desejo de virtude? Quanto a saber se a generosidade resulta de um sentimento natural e primeiro, como queria Hume, ou de um processo de elaboração do desejo e do amor a si (especialmente pela imitação dos afetos e a sublimação das pulsões), como puderam pensar Spinoza ou Freud, cabe aos antropólogos decidir, e isso, moralmente, não importa muito. É enganar-se sobre as virtudes fundar seu valor em sua origem, assim como querer, em nome dessa origem, invalidá-las. Que elas vêm todas da animalidade, logo do mais baixo (pelo menos do que assim nos parece; é claro que a matéria e o vazio, de que tudo vem, inclusive a animalidade, não tem nem alto nem baixo em lugar nenhum), disso estou pessoalmente persuadido. Mas isso também significa que elas nos elevam, e é por isso que o contrário de toda virtude, sem dúvida, é uma forma de baixeza. A generosidade nos eleva em direção aos outros, poderíamos dizer, e em direção a nós mesmos enquanto libertos de nosso pequeno eu. Aquele que não fosse nem um pouco generoso, a língua nos adverte que seria baixo, covarde, mesquinho, vil, avaro, cupido, egoísta, sórdido… E todos nós o somos, no entanto nem sempre ou completamente: a generosidade é o que nos separa dessa baixeza ou, às vezes, nos liberta dela. Notemos, para concluir, que a generosidade, como todas as virtudes, é plural, tanto em seu conteúdo como nos nomes que lhe prestamos ou que servem para designá-la. Somada à coragem, pode ser heroísmo. Somada à justiça, faz-se eqüidade. Somada à compaixão, torna-se benevolência. Somada à misericórdia, vira indulgência. Mas seu mais belo nome é seu segredo, que todos conhecem: somada à doçura, ela se chama bondade. /André Comte-Sponville