A humildade é uma virtude humilde: ela até duvida que seja uma virtude! Quem se gabasse da sua mostraria simplesmente que ela lhe falta. Isso todavia não prova nada: não nos devemos gabar, nem nos orgulhar, de nenhuma virtude, e é isso que a humildade ensina. Ela torna as virtudes discretas, como que despercebidas de si mesmas, quase negadas. Inconsciência? É antes uma consciência extrema dos limites de qualquer virtude, e de si. Essa discrição é o sinal – ele mesmo discreto – de uma lucidez sem falha e de uma exigência sem fraquezas. A humildade não é a depreciação de si, ou é uma depreciação sem falsa apreciação. Não é ignorância do que somos, mas, ao contrário, conhecimento, ou reconhecimento, de tudo o que não somos. É seu limite, pois refere-se a um nada. Mas é nisso, também, que ela é humana: “Tão sábio quanto quiser, mas enfim é um homem: o que é mais caduco, mais miserável e mais nada?” Sabedoria de Montaigne: sabedoria da humildade. É absurdo querer superar o homem, o que não podemos, o que não devemos fazer. A humildade é virtude lúcida, sempre insatisfeita consigo mesma, mas que o seria ainda mais se não o fosse. É a virtude do homem que sabe não ser Deus. Assim, é a virtude dos santos, quando os sábios, fora Montaigne, às vezes parecem desprovidos dela. Pascal não está de todo errado ao criticar a soberba dos filósofos. É que alguns deles levaram a sério sua divindade, sobre a qual os santos não se iludem. “Divino, eu?” Seria preciso ignorar Deus, ou ignorar a si mesmo. A humildade recusa pelo menos a segunda dessas duas ignorâncias, e é nisso, antes de tudo, que ela é uma virtude: está vinculada ao amor à verdade e a ele se submete. Ser humilde é amar a verdade mais que a si mesmo. É nisso também que todo pensamento digno desse nome supõe a humildade: o pensamento humilde, isto é, o pensamento, opõe-se nisso à vaidade, que não pensa mas crê em si. Dirão que essa humildade não dura muito… Mas o pensamento também não. Daí os orgulhosos sistemas. A humildade, por sua vez, pensaria antes sem crer em si: ela duvida de tudo, especialmente de si mesma. Humana, humana demais… Quem sabe se ela não é a máscara de um orgulho muito sutil? Mas tentemos antes de tudo defini-la. “A humildade”, escreve Spinoza, “é uma tristeza nascida do fato de o homem considerar sua impotência ou sua fraqueza.” Essa humildade é menos uma virtude do que um estado: é um afeto, diz Spinoza, em outras palavras, um estado de alma. Se alguém imagina sua própria impotência, sua alma “se entristece por isso mesmo”. É a experiência de nós todos, e seria enganoso fazer dela uma força. Ora, a virtude, para Spinoza, não é outra coisa: virtude é força de alma, e sempre alegre! A humildade, portanto, não é uma virtude, e o sábio não tem por que se preocupar com ela. É possível, no entanto, que seja apenas uma questão de palavras. Não apenas porque a humildade, para Spinoza, sem ser uma virtude, é não obstante “mais útil que prejudicial” (ela pode ajudar quem a pratica a “viver enfim sob a condução da razão”, e os Profetas tiveram razão de recomendá-la), mas também, e sobretudo, porque Spinoza tem em vista expressamente um outro afeto, positivo, que corresponde exatamente a nossa humildade virtuosa: “Se supusermos um homem concebendo sua impotência porque ele conhece algo mais potente que ele mesmo, e por esse conhecimento delimita sua potência de agir, estaremos concebendo então apenas que esse homem se conhece distintamente, isto é, que sua potência de agir é secundada.” Essa humildade é de fato uma virtude, pois é uma força maior, para a alma, conhecer-se adequadamente (o contrário da humildade é o orgulho, e todo orgulho é ignorância) ao mesmo tempo em que se conhece outra coisa maior. Sem tristeza? Por que não, se cessa de amar unicamente a si? Portanto, apesar de alguns tradutores, evite-se confundir a humildade com a micropsuchia de Aristóteles, que é mais bem vertida por baixeza ou pequenez. De que se trata? Estamos lembrados de que toda virtude, para Aristóteles, é uma cumeada entre dois abismos. Assim é no caso da magnanimidade ou grandeza de alma: quem se afasta dela por excesso cai na vaidade; quem se afasta por falta, cai na baixeza. Ser baixo é privar-se daquilo de que se é digno, é desconhecer seu valor real, a ponto de se interditar qualquer ação um pouco elevada, por nunca se acreditar capaz dela. Essa pequenez corresponde muito bem ao que Spinoza, distinguindo-a da humildade (humilitas), chama de abjectio, que se costuma traduzir por desestima ou desprezo por si, mas que Bernard Pautrat teve razão de traduzir por baixeza: “A baixeza (abjectio) é fazer de si, por tristeza, menos caso do que seria justo.” É evidente que essa baixeza pode nascer da humildade, e é isso então que torna esta última viciosa. Mas não há aí nenhuma fatalidade: alguém pode sentir-se triste com sua impotência sem com isso exagerá-la, e mesmo – é o que chamo de humildade virtuosa – achando nessa tristeza um acréscimo de força para combatê-la. Dir-se-á que isso sai do spinozismo. Não estou certo, e, claro, pouco me importa. Que a tristeza é uma força em nós, às vezes, ou que ela pode mobilizar a força de que dispomos, a experiência ensina, parece-me, o que Spinoza por sinal reconhece e que importa muito mais do que os sistemas. Há uma coragem do desespero, e também uma coragem da humildade. De resto, não podemos escolher. Mais vale uma verdadeira tristeza do que uma falsa alegria. A humildade, como virtude, é essa tristeza verdadeira de sermos apenas nós. E como poderíamos ser outra coisa? A misericórdia também vale para nós mesmos, temperando a humildade com um pouco de doçura. Que é necessário contentar-se consigo, é o que ensina a misericórdia. Mas sentir-se contente consigo, quem poderia, sem vaidade? Misericórdia e humildade vão de par e se completam. Aceitar-se – mas não se iludir. “O contentamento de si”, escreve Spinoza, “é na realidade o objeto supremo de nossa esperança.” Digamos que a humildade é seu desespero, e tudo estará dito. Tudo? Ainda não, porém. Pode até ser que o essencial não tenha sido abordado. O essencial? O valor da humildade. Virtude, disse eu. Mas de que importância? De que nível? De que dignidade? Vê-se o problema: se a humildade é digna de respeito ou de admiração, não é um erro ela ser humilde? E se ela tiver razão de o ser, como se teria razão de admirá-la? Parece que a humildade é uma virtude contraditória, que só poderia justificar-se por sua própria ausência, ou só valer à sua custa. “Sou muito humilde”: autocontradição performática. “Falta-me humildade”: é um primeiro passo em sua direção. Mas como um sujeito pode valer desvalorizando-se? Alcançamos aqui, no fundo, a dupla crítica, kantiana e nietzscheana, da humildade. Vejamos um pouco os textos. Na Doutrina da virtude, Kant opõe legitimamente o que chama de “falsa humildade” (ou baixeza) ao dever de respeitar em si a dignidade do homem como sujeito moral: a baixeza é o contrário da honra, explica ele, e aquela é tão certamente um vício quanto esta, uma virtude. Kant apressa-se evidentemente em acrescentar que também existe uma verdadeira humildade (humilitas moralis), da qual ele dá esta bela definição: “A consciência e o sentimento de seu pequeno valor moral em comparação com a lei é a humildade.” Longe de atentar à dignidade do sujeito, esta última humildade a supõe (não haveria razão alguma para submeter à lei um indivíduo que não fosse capaz de tal legislação interior: a humildade implica a elevação) e a confirma (submeter-se à lei é uma exigência da própria lei: a humildade é um dever). O fato é que Kant a mantém dentro de limites rigorosíssimos, bem aquém, diga-se de passagem, dos hábitos cristãos (ou apenas católicos?), e mesmo, parece-me, de certa disposição espiritual de que os místicos, e não só no Ocidente, atestam a generalidade e – em todo caso para quem leva a sério o que eles têm a nos dizer – o valor. “Ajoelhar-se ou prosternar-se até o chão, mesmo para tornar sensível a si a adoração das coisas celestes, é contrário à dignidade humana”, escreve Kant, e isso é bonito. Mas é verdade? É evidente que ninguém deve ser servil nem bajulador. Mas será necessário para tanto – e contra as tradições espirituais mais elevadas e mais comprovadas – condenar também, por exemplo, a mendicidade? São Francisco de Assis ou Buda pecaram contra a humanidade? A rigor, podemos admitir que é “em todos os casos indigno de um homem humilhar-se e curvar-se diante de outro”. Mas, além de que humildade não é humilhação e nada tem a ver com ela (a humilhação só serve para os orgulhosos ou para os perversos), acaso devemos por isso levar totalmente a sério, tratando-se de nós, essa sublimidade, como diz Kant, de nossa constituição moral? Não seria, precisamente, carecer de humildade, de lucidez – e de humor? O homem empírico (homo phaenomenon, animal rationale) não tem importância, explica Kant, mas considerado como pessoa (homo noumenon), isto é, como sujeito moral, ele possui uma dignidade absoluta: “seu pequeno valor enquanto homem animal não pode prejudicar sua dignidade como homem razoável”. Que seja. Mas o que sobra, se os dois são apenas um? São mais humildes os materialistas, que nunca esquecem o animal neles. Filhos da terra (humus, de que vem humildade) e indignos para sempre do céu que inventam para si. E mesmo se tratando da “comparação de si com outros homens?”: é de fato condenável ou baixo inclinar-se diante de Mozart, Cavaillès ou do abbé Pierre? “Quem se transforma em minhoca não deve queixar-se, depois, de ser pisado”, escreve altivamente Kant. Mas quem se transforma em estátua – ainda que uma estátua à glória do Homem ou da Lei -, deverá se queixar se o acharem suspeito de presunção ou frieza? Mais vale o mendigo sublime, que lava os pés do pecador. Quanto a Nietzsche, poderíamos segui-lo e retomá-lo interminavelmente: ele tem razão em tudo, está errado em tudo, e o que diz da humildade não escapa desse turbilhão. Quem pode contestar que há na humildade, tantas vezes, uma boa parte de niilismo ou de ressentimento? Quantos só se acusam para melhor acusar o mundo ou a vida – e com isso se desculparem? Quantos só se negam por incapacidade de afirmar – e fazer! – o que quer que seja? Sim. “Aqueles que imaginamos mais cheios de desestima por si mesmos e de humildade são geralmente os mais cheios de ambição e de inveja”, já dizia Spinoza. Mais uma vez sim. No entanto, será o caso de todos? Há uma humildade em Cavaillès, em Simone Weil, em Etty Hillesum – e mesmo em Pascal ou Montaigne! -, ao lado da qual a grandeza nietzscheana é que parece presunção. Nietzsche retoma a mesma imagem de Kant, a da minhoca: “A minhoca se enrola quando pisamos nela. Isso encerra muita sabedoria. Com isso, ela diminui a possibilidade de que tornem a pisar nela. Na linguagem da moral: humildade.” Mas a humildade é só isso? Será isso o essencial? Alguém imagina, com esse gênero de psicologia, explicar a humildade de um são Francisco de Assis ou de um são João da Cruz? “Os mais generosos costumam ser os mais humildes”, escreve Descartes, que nada tinha de minhoca. Também não se poderia ver na humildade apenas o inverso de não sei que ódio a si. Não confundamos humildade e consciência pesada, humildade e remorso, humildade e vergonha. Trata-se de julgar não o que se fez, mas o que se é. E somos tão pouco… Haverá mesmo o que julgar? O remorso, a consciência pesada ou a vergonha supõem que poderíamos ter agido de outro modo, e melhor. A humildade constataria, antes, que não poderíamos ser melhores. “Você pode fazer melhor”: esta fórmula do mestre acusa antes de incentivar, e é também o que diz o remorso. A humildade diria antes: “É o que ele pode.” Humilde demais para se acusar ou se desculpar. Lúcida demais para ter plena raiva de si. Mais uma vez, humildade e misericórdia andam juntas – e a coragem não precisa de encorajamentos. O remorso é um erro (porque supõe o livre-arbítrio: os estóicos e Spinoza recusam-no por isso) antes de ser uma falta. A humildade, um saber antes de ser uma virtude. Triste saber? Se quisermos. Porém mais útil ao homem do que uma alegre ignorância. Mais vale se depreciar do que se enganar. Sem confundir uma com a outra, poderíamos aplicar à humildade, e a fortiriori (pois ela não supõe a ilusão do livre-arbítrio, nem mesmo o aumento de sofrimento), o que Spinoza diz da vergonha: “Embora seja triste, na realidade, o homem que tem vergonha do que fez é, no entanto, mais perfeito do que o impudente que não tem nenhum desejo de viver honestamente.” Mesmo triste, o homem humilde é entretanto mais perfeito do que o impudente pretensioso. É o que todos sabem (mais vale a humildade do homem de bem do que a arrogância satisfeita do canalha), e que faz Nietzsche estar errado. A humildade é virtude de escravo, diz ele; os amos, “altaneiros e orgulhosos”, nada têm a ver com ela: toda humildade lhes é desprezível. Admitamos. Mas o desprezo não é mais desprezível do que a humildade? E a “glorificação de si mesmo”, graças à qual o aristocrata se reconhece, é compatível com essa lucidez, da qual aliás Nietzsche, e com razão, faz a virtude filosófica por excelência? “Conheço-me demais para me glorificar do que quer que seja”, objetaria o homem humilde; “preciso antes de toda a misericórdia de que sou capaz apenas para poder me suportar…” O que é mais ridículo do que bancar o super-homem? Para que deixar de crer em Deus, se é para se enganar a este ponto sobre si mesmo? A humildade é o ateísmo na primeira pessoa: o homem humilde é ateu de si, como o não-crente o é de Deus. Por que pretender quebrar todos os ídolos, se é para glorificar o último (o eu!), se é para celebrar seu próprio culto? “Humildade igual a verdade”, dirá Jankélévitch – como isso é mais verdadeiro, e mais humilde, do que a glorificação nietzscheana! Sinceridade e humildade são irmãs: “A implacável e lúcida sinceridade, a sinceridade sem ilusões é, para o sincero, uma lição contínua de modéstia; e, vice-versa, a modéstia favorece o exercício da autoscopia sincera.” É esse também o espírito da psicanálise (“sua majestade, o eu”, como diz Freud, nela perde seu trono), pelo qual, sobretudo, ela é estimável. Deve-se amar a verdade, ou amar a si. Todo conhecimento é uma ferida narcísica. Devemos então nos odiar, como queria Pascal? Claro que não: seria faltar com a caridade, à qual todos têm direito (inclusive nós mesmos), ou antes, que dá a cada um, para além de todo direito, o amor que cada um não merece mas que o ilumina, como uma graça injustificável e devida, gratuita e necessária – o pouco de amor verdadeiro, mesmo nos dizendo respeito (mas então ele não se refere mais ao ego: ele o atravessa), de que às vezes somos capazes! Amar ao próximo como a si mesmo, e a si mesmo como a um próximo: “Onde está a humildade”, dizia santo Agostinho, “está também a caridade.” É que a humildade leva ao amor, como Jankélévitch recordou, e todo amor verdadeiro, sem dúvida, a supõe: sem a humildade, o eu ocupa todo o espaço disponível, e só vê o outro como objeto (de concupiscência, não de amor!) ou como inimigo. A humildade é esse esforço, pelo qual o eu tenta se libertar das ilusões que tem sobre si mesmo e – porque essas ilusões o constituem – pelo qual ele se dissolve. Grandeza dos humildes. Eles vão ao fundo de sua pequenez, de sua miséria, de seu nada: onde não há mais nada, onde não há mais que tudo. Ei-los sós e nus, como qualquer um: expostos sem máscara ao amor e à luz. Mas o amor sem ilusões nem concupiscência – a caridade -, será que somos capazes dele? Não cabe aqui responder a essa questão. Mas, ainda que não sejamos, resta a compaixão, que é sua face mais humilde e sua aproximação cotidiana. Em seu capítulo sobre a humildade, Jankélévitch observa com razão que “os gregos quase não conheceram esta virtude”. Talvez seja por não se terem dado um Deus suficientemente grande para que a pequenez do homem aparecesse como deveria? Não é certo, entretanto, que eles tenham se enganado sempre acerca da sua grandeza (Jankélévitch se engana, me parece, como Pascal, sobre o “orgulho estóico”: também há uma humildade em Epicteto, pela qual o ego sabe não ser Deus, e não ser nada); mas talvez eles tivessem menos narcisismo a combater, ou menos ilusões a dissipar. O fato é que esse Deus (o nosso: o dos judeus, dos cristãos e dos muçulmanos), quer se creia nele ou não, é agora, para todos, por diferença, uma terrível lição de humildade. Os antigos se definiam como mortais: apenas a morte, pensavam eles, os separava do divino. Não estamos mais nesse ponto e sabemos agora que mesmo a imortalidade seria incapaz (e por isso, sem dúvida, insuportável) de fazer de nós outra coisa, infelizmente, que não o que somos… Quem às vezes não aspira a morrer, para ser libertado de si? A humildade é nisso, talvez, a mais religiosa das virtudes. Como gostaríamos de nos ajoelhar nas igrejas! Por que recusá-lo? Estou falando apenas por mim: é que eu precisaria imaginar que um Deus me criou – e dessa pretensão ao menos estou libertado. Somos tão pouca coisa, tão fracos, tão miseráveis… A humanidade constitui uma criação tão irrisória: como imaginar que um Deus tenha querido isso? É assim que a humildade, nascida da religião, pode conduzir ao ateísmo. Crer em Deus seria pecado de orgulho. /André Comte-Sponville