Não se trata de não desfrutar, nem de desfrutar o menos possível. Isso não seria virtude mas tristeza, não temperança mas ascetismo, não moderação mas impotência. Contra isso nunca será demais citar o belo escólio de Spinoza, o mais epicuriano que ele escreveu talvez, em que está tão bem dito o essencial: “Certamente apenas uma feroz e triste superstição proíbe ter prazeres. Com efeito, o que é mais conveniente para aplacar a fome e a sede do que banir a melancolia? Esta a minha regra, esta a minha convicção. Nenhuma divindade, ninguém, a não ser um invejoso, pode ter prazer com a minha impotência e a minha dor, ninguém toma por virtude nossas lágrimas, nossos soluços, nosso temor e outros sinais de impotência interior. Ao contrário, quanto maior a alegria que nos afeta, quanto maior a perfeição à qual chegamos, mais é necessário participarmos da natureza divina. Portanto, é próprio de um homem sábio usar as coisas e ter nisso o maior prazer possível (sem chegar ao fastio, o que não é mais ter prazer).” A temperança se situa quase toda nesse parêntese. É o contrário do fastio, ou o que leva a ele; não se trata de desfrutar menos, mas de desfrutar melhor. A temperança, que é a moderação nos desejos sensuais, é também a garantia de um desfrutar mais puro ou mais pleno. É um gosto esclarecido, dominado, cultivado. Spinoza, no mesmo escólio, continuava assim: “É próprio de um homem sábio, digo eu, mandar servir em sua refeição e para a reparação de suas forças alimentos e bebidas agradáveis ingeridos em quantidade moderada, como também perfumes, o adorno das plantas verdejantes, os adereços, a música, os jogos que exercitam o corpo, os espetáculos e outras coisas da mesma sorte, de que cada um pode fazer uso sem prejuízo para outrem.” A temperança é essa moderação pela qual permanecemos senhores de nossos prazeres, em vez de seus escravos. É o desfrutar livre, e que, por isso, desfruta melhor ainda, pois desfruta também sua própria liberdade. Que prazer é fumar, quando podemos prescindir de fumar! Beber, quando não somos prisioneiros do álcool! Fazer amor, quando não somos prisioneiros do desejo! Prazeres mais puros, porque mais livres. Mais alegres, porque mais bem controlados. Mais serenos, porque menos dependentes. É fácil? Claro que não. É possível? Nem sempre, sei do que estou falando, nem para qualquer um. É nisso que a temperança é uma virtude, isto é, uma excelência: ela é aquela cumeada, dizia Aristóteles, entre os dois abismos opostos da intemperança e da insensibilidade, entre a tristeza do desregrado e a do incapaz de gozar, entre o fastio do glutão e o do anoréxico. Que infelicidade suportar seu corpo! Que felicidade desfrutá-lo e exercê-lo! O intemperante é um escravo, mais subjugado ainda por transportar em toda parte seu amo consigo. Prisioneiro de seu corpo, prisioneiro de seus desejos ou de seus hábitos, prisioneiro de sua força ou de sua fraqueza. Tinha razão Epicuro, que, em vez de temperança ou moderação (sophrosiné), como Aristóteles ou Platão, preferia falar de independência (autarkéia). Mas uma não dispensa a outra: “Vemos a independência como um grande bem, não, em absoluto, para que vivamos de pouco, mas a fim de que, se não temos muito, nos contentemos com pouco, persuadidos de que os que menos necessitam da abundância a desfrutam com maior prazer, e de que tudo o que é natural é fácil de conseguir, mas o que é vão é difícil de obter.” Numa sociedade não muito miserável, a água e o pão não faltam quase nunca. Na sociedade mais rica, o ouro ou o luxo sempre faltam. Como seríamos felizes uma vez que somos insatisfeitos? E como seríamos satisfeitos uma vez que nossos desejos não têm limites? Epicuro, ao invés, fazia um banquete com um pouco de queijo ou de peixe seco. Que felicidade comer quando se tem fome! Que felicidade não ter mais fome quando se comeu! E que liberdade só estar submetido à natureza! A temperança é um meio para a independência, assim como esta é um meio para a felicidade. Ser temperante é poder contentar-se com pouco; mas não é o pouco que importa: é o poder, e é o contentamento. A temperança – como a prudência e como todas as virtudes, talvez – pertence, pois, à arte de desfrutar; é um trabalho do desejo sobre si mesmo, do vivo sobre si mesmo. Ela não visa superar nossos limites, mas respeitá-los. É uma ocorrência entre outras do que Foucault chamava a preocupação consigo: virtude ética, muito mais que moral, e que é menos do âmbito do dever do que do bom senso. É a prudência aplicada aos prazeres; trata-se de desfrutar o mais possível, o melhor possível, mas por uma intensificação da sensação ou da consciência que se tem desse desfrutar, e não pela multiplicação indefinida de seus objetos. Pobre Dom Juan, que necessita de tantas mulheres! Pobre alcoólatra, que precisa beber tanto! Pobre glutão, que precisa comer tanto! Epicuro ensinava a sentir, antes, os prazeres conforme eles aparecem, tão fáceis de satisfazer, quando são naturais, quanto o corpo de aplacar. Há coisa mais simples do que matar a sede? Mais fácil de satisfazer – salvo miséria extrema – do que um estômago ou um sexo? Mais limitada, e mais felizmente limitada, do que nossos desejos naturais e necessários? Não é o corpo que é insaciável. A ilimitação dos desejos, que nos condena à falta, à insatisfação ou à infelicidade, nada mais é que uma doença da imaginação. Temos sonhos maiores que a barriga, e censuramos absurdamente nossa barriga por sua pequenez! Já o sábio “estabelece limites para o desejo, como para o temor”: são os limites do corpo, e são os da temperança. Mas os intemperantes os desprezam ou querem livrar-se deles. Não têm mais fome? Provocam o próprio vômito. Não têm mais sede? Alguns amendoins bem salgados – ou o próprio álcool – resolvem. Não têm mais vontade de fazer amor? Alguma revista pornográfica dará um jeito de pôr a máquina para funcionar de novo… Sem dúvida, mas para quê? E a que preço? Ei-los prisioneiros do prazer, em vez de serem liberados dele (pelo próprio prazer)! Prisioneiros da falta, a tal ponto que, na saciedade, acaba por lhes faltar! Que tristeza, dizem então, não ter mais fome nem sede de nenhum tipo… É que eles querem mais, sempre mais, e não sabem se contentar, nem mesmo com o excesso! É por isso que os desregrados são tristes; é por isso que os alcoólatras são infelizes; e o que há de mais sinistro do que um glutão empanturrado? “Comi demais”, diz ele refestelando-se, e ei-lo pesado, inchado, esgotado… “A intemperança é peste da volúpia”, dizia Montaigne, “e a temperança não é seu flagelo: é seu tempero”, que permite saborear o prazer “em sua mais graciosa doçura”. Já faz assim o gourmet que, ao contrário do glutão, prefere a qualidade à quantidade. É um primeiro progresso. Mas o sábio tem objetivo mais elevado, mais próximo de si ou do essencial: a qualidade de seu prazer importa-lhe mais do que a do prato que o ocasiona. É um gourmet, se quisermos, mas em segundo grau, que, no entanto, seria o grau primordial: um gourmet de si ou, antes (pois o eu nada mais é que um prato como outro qualquer), da vida, do prazer anônimo e impessoal de comer, de beber, de sentir, de amar… Não é um esteta, é um conhecedor. Ele sabe que só há prazer do gosto, e só há gosto do desejo: “Os pratos simples”, diz-se ele, “proporcionam um prazer igual ao de um regime suntuoso, uma vez suprimida toda a dor que vem da necessidade; e pão de cevada e água proporcionam o prazer extremo, quando alguém os leva à boca na necessidade. Portanto, o costume de regimes simples e não-dispendiosos é adequado para perfazer a saúde, torna o homem ativo nas ocupações essenciais da vida, coloca-nos em melhor disposição quando nos aproximamos, por intervalos, dos alimentos custosos, e deixa-nos sem temor diante da fortuna.” Numa sociedade desenvolvida, como era a de Epicuro, como é a nossa, o que é necessário é fácil de conseguir; o que não, difícil de conseguir ou de conservar serenamente. Mas quem sabe se contentar com o necessário? Quem sabe apreciar o supérfluo apenas quando este se apresenta? Somente o sábio, talvez. A temperança intensifica seu prazer, quando o prazer está presente, e faz as vezes deste, quando não está. Portanto, ele sempre está, ou quase sempre. Que prazer estar vivo! Que prazer não carecer de nada! Que prazer ser senhor de seus prazeres! O sábio epicurista pratica a cultura intensiva – em vez de extensiva – de suas volúpias. O melhor, não o mais, é o que o atrai e que basta à sua felicidade. Ele vive com “o coração contente de pouco”, como dirá Lucrécio, ainda mais seguro do seu bem-estar por saber que “desse pouco nunca há penúria”, ou que esta, se viesse a se impor, o curaria rapidamente dela mesma, e de tudo. Aquele a quem a vida basta, de que poderia carecer? São Francisco de Assis redescobrirá esse segredo, talvez, de uma pobreza feliz. Mas a lição vale, sobretudo, para nossas sociedades de abundância, nas quais se morre e se sofre com maior freqüência por intemperança do que por fome ou ascetismo. A temperança é uma virtude para todos os tempos, tanto mais necessária, contudo, quanto mais favoráveis eles são. Não é uma virtude excepcional, como a coragem (tanto mais necessária, ao contrário, quanto mais difíceis os tempos), mas uma virtude comum e humilde: virtude não de exceção mas de regra, não de heroísmo mas de comedimento. É o contrário do desregramento de todos os sentidos, caro a Rimbaud. É por isso, talvez, que nossa época, que prefere os poetas aos filósofos e as crianças aos sábios, tende a esquecer que a temperança é uma virtude, para só ver nela – “tomo cuidado”, dizem – uma higiene. Pobre época, que acima dos poetas só sabe pôr os médicos! Santo Tomás bem viu que essa virtude cardeal, embora menos elevada do que as outras três (a prudência é a mais necessária, a coragem e a justiça as mais admiráveis), prevalecia muitas vezes sobre elas pela dificuldade. É que a temperança tem por objeto os desejos mais necessários à vida do indivíduo (beber, comer) e da espécie (fazer amor), que são também os mais fortes e, portanto, os mais difíceis de dominar. Isso quer dizer que não se trata de suprimi-los – a insensibilidade é um defeito -, mas no máximo, e tanto quanto possível, controlá-los (no sentido em que se fala em inglês de self-control), de regrá-los (como se acerta um balé ou se regula um motor), de mantê-los em equilíbrio, em harmonia ou em paz. A temperança é uma regulação voluntária da pulsão de vida, uma afirmação sadia de nosso poder de existir, como diria Spinoza, em especial do poder de nossa alma sobre os impulsos irracionais de nossos afetos ou de nossos apetites. A temperança não é um sentimento, é um poder, isto é, uma virtude. Ela é “a virtude que supera todos os gêneros de embriaguez”, dizia Alain, e deve, portanto, superar também a embriaguez da virtude, e de si mesma – e é aí que ela se aproxima da humildade. /André Comte-Sponville