sábado, 14 de março de 2009

A CORAGEM !

De todas as virtudes, a coragem é sem dúvida a mais universalmente admirada. Fato raro, o prestígio que desfruta parece não depender nem das sociedades, nem das épocas, e quase nada dos indivíduos. Em toda parte a covardia é desprezada; em toda parte a bravura é estimada. As formas podem variar, claro, assim como os conteúdos: cada civilização tem seus medos, cada civilização suas coragens. Mas o que não varia, ou quase não varia, é que a coragem, como capacidade de superar o medo, vale mais que a covardia ou a poltronice, que ao medo se entregam. A coragem é a virtude dos heróis; e quem não admira os heróis? Essa universalidade, porém, não prova nada, seria até suspeita. O que é universalmente admirado o é, portanto, também pelos maus e pelos imbecis. São eles tão bons juízes assim? Além do mais, admiramos também a beleza, que não é uma virtude; e muitos desprezam a doçura, que o é. O fato de a moral ser universalizável, em seu princípio, não prova que ela seja universal em seu sucesso. A virtude não é um espetáculo e não lhe importam os aplausos. Sobretudo, a coragem pode servir para tudo, para o bem como para o mal, e não alteraria a natureza deste ou daquele. Maldade corajosa é maldade. Fanatismo corajoso é fanatismo. Essa coragem – a coragem para o mal, no mal – também é uma virtude? Parece difícil achar que sim. Ainda que se possa admirar em alguma coisa a coragem de um assassino ou de um SS, em que isso os faz virtuosos? Um pouco mais covardes, teriam feito menos mal. O que é essa virtude que pode servir para o pior? O que é esse valor que parece indiferente aos valores? “A coragem não é uma virtude”, dizia Voltaire, “mas uma qualidade comum aos celerados e aos grandes homens.” Uma excelência, pois, mas que não seria, em si, nem moral nem imoral. O mesmo se dá com a inteligência ou a força, também elas admiradas, também elas ambíguas (podem servir tanto ao mal como ao bem) e, por isso, moralmente indiferentes. No entanto, não estou muito certo de que a coragem não signifique mais. Consideremos um patife qualquer: ele ser inteligente ou idiota, robusto ou magricela, não muda em nada, do ponto de vista moral, seu valor. Inclusive, em certo grau, a idiotice poderia desculpá-lo, como também, talvez, alguma deficiência física que tivesse perturbado seu caráter. Circunstâncias atenuantes, dirão: se ele não fosse idiota ou manco, seria tão mau? A inteligência ou a força, longe de atenuarem a ignomínia de um indivíduo, antes a aumentariam, tornando-a ao mesmo tempo mais nefasta e mais condenável. O mesmo se dá com a coragem. Se a covardia às vezes pode servir de desculpa, a coragem, enquanto tal, ainda assim continua eticamente valorizada (o que não prova, veremos, que seja sempre uma virtude) e, parece-me, mesmo no patife. Suponhamos dois SS, em tudo comparáveis mas sendo que um se revela tão covarde quanto o outro corajoso; o segundo talvez seja mais perigoso, mas quem poderá dizer que é mais culpado? Mais desprezível? Mais odiável? Se digo de alguém: “é cruel e covarde”, os dois qualificativos se somam. Se digo: “é cruel e corajoso”, antes se subtrairiam. Como odiar ou desprezar inteiramente um camicase? Mas deixemos a guerra, que nos levaria longe demais. Imaginemos em vez disso dois terroristas, em tempo de paz, que explodem cada um avião de carreira cheio de turistas… Como não desprezar o que faz isso de terra, sem correr pessoalmente nenhum risco, mais do que o que fica no avião e morre, em conhecimento de causa, com os outros passageiros? Detenho-me nesse exemplo. Podemos supor nesses dois indivíduos motivações semelhantes, por exemplo ideológicas, como também que seus atos terão, em relação às vítimas, idênticas conseqüências. E admitiremos que essas conseqüências são demasiado pesadas e essas motivações demasiado discutíveis para que aquelas possam ser justificadas por estas; em outras palavras, os dois atentados são moralmente condenáveis. Mas um de nossos dois terroristas acrescenta a isso a covardia, ao saber que não corre risco nenhum, e o outro, coragem, sabendo que vai morrer. Em que isso altera as coisas? Em nada, repitamos, para as vítimas. Mas e para nossos colocadores de bombas? A coragem contra a covardia? Sem dúvida, mas isso é moral ou psicologia? Virtude ou caráter? Que a psicologia ou o caráter possam influir, e mesmo que influem necessariamente, é inegável. Mas parece que se acrescenta o seguinte, que diz respeito à moral: O terrorista heróico atesta pelo menos, com seu sacrifício, a sinceridade e, talvez, o desinteresse de suas motivações. Aludo como prova que a espécie de estima (mista, sem dúvida) que podemos sentir por ele seria atenuada, ou até desapareceria, se soubéssemos, lendo seu diário íntimo, por exemplo, que só cometeu seu delito na convicção de que ganharia com isso – pensemos em algum fanatismo religioso – muito mais do que perderia, a saber, uma eternidade de vida feliz. Nesta última hipótese, o egoísmo resgataria seus direitos ou, antes, nunca os teria perdido, e a moralidade do ato recuaria na mesma medida. Já não estaríamos lidando com alguém que está pronto a sacrificar vítimas inocentes para sua felicidade própria, em outras palavras, de um patife ordinário, por certo corajoso, em se tratando dessa vida, mas de uma coragem interessada, ainda que post mortem, e portanto, privada de todo e qualquer valor moral? Coragem egoísta é egoísmo. Imaginemos, ao contrário, um terrorista ateu: se ele sacrifica a vida, como lhe atribuir motivações baixas? Coragem desinteressada é heroísmo; e, se isso nada prova quanto ao valor do ato, indica pelo menos algo quanto ao valor do indivíduo. Esse exemplo me esclarece. O que estimamos, na coragem, e que culmina no sacrifício de si, seria, pois, em primeiro lugar, o risco aceito ou corrido sem motivação egoísta, em outras palavras, uma forma, se não sempre de altruísmo, pelo menos de desinteresse, de desprendimento, de distanciamento do eu. É, em todo caso, o que na coragem parece moralmente estimável. Alguém agride você na rua, cortando qualquer possibilidade de retirada. Você vai se defender furiosamente ou, ao contrário, implorar clemência? É um problema principalmente de estratégia ou, digamos, de temperamento. Que se possa achar a primeira atitude mais gloriosa ou mais viril, está bem. Mas a glória não é moral, nem a virilidade, virtude. Supondo-se que por outro lado, sempre na rua, você ouça uma mulher pedir socorro porque um malfeitor a quer estuprar, está claro que a coragem de que você dará ou não prova, sempre devendo algo, por certo, a seu caráter, comprometerá também sua responsabilidade propriamente moral; em outras palavras, sua virtude ou sua indignidade. Em resumo, embora sempre estimada, de um ponto de vista psicológico ou sociológico, a coragem só é verdadeiramente estimável do ponto de vista moral quando se põe, ao menos em parte, a serviço de outrem, quando escapa, pouco ou muito, do interesse egoísta imediato. É por isso que, sem dúvida, e especialmente para um ateu, a coragem diante da morte é a coragem das coragens, pois o eu não pode encontrar nenhuma gratificação concreta ou positiva. Digo “imediata”, “concreta” e “positiva” porque todos sabem muito bem que não nos desvencilhamos sem mais nem menos do ego; até mesmo o herói é suspeito de ter buscado a glória ou fugido do remorso, em outras palavras, de ter buscado na virtude, ainda que indiretamente e a título póstumo, sua própria felicidade ou seu bem-estar. Não se escapa do ego; não se escapa do princípio de prazer. Mas encontrar seu prazer em servir ao outro, encontrar seu bem-estar na ação generosa, longe de contrariar o altruísmo é a própria definição e o princípio da virtude. O amor a si, dizia Kant, sem ser sempre condenável, é a fonte de todo mal. Acrescento de bom grado: e o amor ao outro, de todo bem. Mas seria alargar demais o fosso que os separa. Só se ama a outro, sem dúvida, amando a si (é por isso que as Escrituras nos dizem justamente que é preciso amar ao próximo “como a si mesmo”), e só se ama a si mesmo, talvez, na proporção do amor recebido e interiorizado. Nem por isso deixa de haver uma diferença de ênfase, ou de orientação, entre o que só ama a si e o que também ama, às vezes até de maneira desinteressada, a um outro, entre o que só gosta de receber ou tomar e o que também gosta de dar, em suma, entre um comportamento sordidamente egoísta e o egoísmo sublimado, purificado, libertado (isso mesmo: o egoísmo libertado do ego!), a que chamamos… altruísmo ou generosidade. Mas voltemos à coragem. O que retenho de meus exemplos, e poderíamos encontrar muitos outros, é, pois, que a coragem, de traço psicológico que é a princípio, só se torna uma virtude quando a serviço de outrem ou de uma causa geral e generosa. Como traço de caráter, a coragem é, sobretudo, uma fraca sensibilidade ao medo, seja por ele ser pouco sentido, seja por ser bem suportado, ou até com prazer. É a coragem dos estouvados, dos brigões ou dos impávidos, a coragem dos “durões”, como se diz em nossos filmes policiais, e todos sabem que a virtude pode não ter nada a ver com ela. Isso quer dizer que ela é, do ponto de vista moral, totalmente indiferente? Não é tão simples assim. Mesmo numa situação em que eu agiria apenas por egoísmo, pode-se estimar que a ação corajosa (por exemplo, o combate contra um agressor, em vez da súplica) manifestará maior domínio, maior dignidade, maior liberdade, qualidades moralmente significativas e que darão à coragem, como que por retroação, algo de seu valor: sem ser sempre moral, em sua essência, a coragem é aquilo sem o que, sem dúvida, qualquer moral seria impossível ou sem efeito. Alguém que se entregasse totalmente ao medo que lugar poderia deixar a seus deveres? Donde a espécie de estima humana – eu diria pré-moral ou quase moral – de que a coragem, mesmo que puramente física e mesmo que a serviço de uma ação egoísta, é objeto. A coragem força o respeito. Fascínio perigoso, decerto (pois a coragem, moralmente falando, não prova nada), mas que se explica talvez pelo fato de que a coragem manifesta pelo menos uma disposição para furtar-se ao puro jogo dos instintos ou dos temores, digamos um domínio de si e de seu medo, disposição ou domínio de si que, sem serem sempre morais, são pelo menos a condição – não suficiente, mas necessária – de toda moralidade. O medo é egoísta. A covardia é egoísta. Não obstante essa coragem primeira, física ou psicológica, ainda não é uma virtude, ou essa virtude (essa excelência) ainda não é moral. Os antigos consideravam-na a marca da virilidade (andréia, que significa coragem em grego, vem, como de resto virtus em latim, de uma raiz que designa o homem, anêr ou vir, não como ser genérico, mas por oposição à mulher), e muitos, ainda hoje, concordariam com eles. “Ter ou não ter” (Nota do tradutor: “Em avoir ou pas”, que em francês corresponde a “ter colhões ou não ter”), diz-se vulgarmente, o que indica pelo menos que a fisiologia, mesmo fantasista, nesse caso importa mais que a moralidade. Não nos deixemos enganar muito por essa coragem (coragem física, coragem do guerreiro). É evidente que uma mulher pode dar prova dela. Mas essa prova, moralmente falando, não prova nada. Essa coragem pode pertencer tanto ao patife como ao homem de bem. É apenas uma regulação feliz ou eficaz da agressividade: coragem patológica, diria Kant, ou passional, diria Descartes, por certo útil, na maioria das vezes, mas útil antes de tudo ao que a sente, e por isso privada em si mesma de qualquer valor propriamente moral. Um assalto a banco não acontece sem perigo nem, portanto, sem coragem. Mas nem por isso é moral; em todo caso seriam necessárias circunstâncias bem particulares (relativas, em especial, às motivações do ato) para que pudesse vir a sê-lo. Como virtude, ao contrário, a coragem supõe sempre uma forma de desinteresse, de altruísmo ou de generosidade. Ela não exclui, sem dúvida, uma certa insensibilidade ao medo, até mesmo um gosto por ele. Mas não os supõe necessariamente. Essa coragem não é a ausência do medo, é a capacidade de superá-lo, quando ele existe, por uma vontade mais forte e mais generosa. Já não é (ou já não é apenas) fisiologia, é força de alma, diante do perigo. Já não é uma paixão, é uma virtude, e a condição de todas. Já não é a coragem dos durões, é a coragem dos doces, e dos heróis. Digo que essa coragem é a condição de qualquer virtude; e eu dizia a mesma coisa, talvez estejam lembrados, da prudência. Por que não? Por que as virtudes seriam condicionadas por uma só dentre elas? As outras virtudes, sem a prudência, seriam cegas ou loucas; mas, sem a coragem, seriam vãs ou pusilânimes. O justo, sem a prudência, não saberia como combater a injustiça; mas, sem a coragem, não ousaria empenhar-se nesse combate. Um não saberia que meios utilizar para alcançar seu fim; outro recuaria diante dos riscos que eles supõem. O imprudente e o covarde não seriam, pois, verdadeiramente justos (de uma justiça em ato, que é a verdadeira justiça), nem um nem outro. Qualquer virtude é coragem; qualquer virtude é prudência. Como o medo poderia substituir esta ou aquela? É o que explica muito bem santo Tomás: tanto quanto a prudência, embora de forma diferente, a fortitudo (a força de alma, a coragem) é “condição de qualquer virtude” ao mesmo tempo em que, diante do perigo, é uma delas. Virtude geral, pois, e cardeal propriamente, pois suporta as outras como um pivô ou um gonzo (cardo), já que se requer para qualquer virtude, dizia Aristóteles, “agir de maneira firme e inabalável” (é o que podemos chamar de força de alma); mas também virtude especial (que chamamos de coragem, estritamente), que permite, como dizia Cícero, “enfrentar os perigos e suportar os labores”. Porque a coragem, notemos de passagem, é o contrário da covardia, decerto, mas também da preguiça ou da frouxidão. É a mesma coragem nos dois casos? Sem dúvida não. O perigo não é o trabalho; o medo não é o cansaço. Mas é preciso superar, nos dois casos, o impulso primeiro ou animal, que preferiria o repouso, o prazer ou a fuga. Na medida em que a virtude é um esforço – sempre o é, fora a graça ou o amor -, toda virtude é coragem, e é por isso que a palavra “covarde”, notava Alain, é “a mais grave das injúrias”. Não porque a covardia seja o pior no homem, mas porque sem coragem não se poderia resistir ao pior em si ou em outrem. Resta saber que relação a coragem mantém com a verdade. Platão interrogou-se muito sobre esse ponto, tentando, sem nunca conseguir de maneira satisfatória, reduzir a coragem ao saber (no Laques e no Protágoras) ou à opinião (na República). A coragem seria “a ciência das coisas temíveis e das que não o são”, explica, ou pelo menos a “salvaguarda constante de uma opinião reta e legitimamente acreditada sobre as coisas que são ou não são temíveis”. Era esquecer que a coragem supõe o medo e se contenta com enfrentá-lo. Podemos mostrar coragem diante de um perigo ilusório; e ela pode nos faltar diante de um perigo comprovado. O medo comanda. O medo basta. Medo justificado ou não, legítimo ou não, razoado ou desarrazoado? Não é esse o problema. Dom Quixote dá prova de coragem contra seus moinhos, ao passo que a ciência, embora muitas vezes tranqüilize, nunca deu coragem a ninguém. Não há virtude que resista mais ao intelectualismo. Quantos ignorantes heróicos? Quantos eruditos covardes? Os sábios? Se o fossem inteiramente, não teriam mais medo de nada (como se vê em Epicuro ou em Spinoza), e qualquer coragem lhes seria inútil. Os filósofos? É indiscutível que precisam de coragem para pensar; mas o pensamento nunca bastou para lhes dar coragem. A ciência ou a filosofia podem, às vezes, dissipar os medos, dissipando seus objetos; mas a coragem, repitamos, não é ausência de medo, é a capacidade de enfrentá-lo, de dominá-lo, de superá-lo, o que supõe que ela existe ou deveria existir. O fato de um eclipse, por exemplo, para um moderno e graças ao saber que temos a seu respeito, já não ser motivo de temor não nos dá, em relação a ele, nenhuma coragem – no máximo, tira-nos uma oportunidade de dar prova de coragem… ou de sua falta. Do mesmo modo, se pudéssemos nos convencer, com Epicuro, de que a morte não é nada para nós (ou, com Platão, de que é desejável!), não precisaríamos mais de coragem para suportar a idéia de morrer. A ciência basta num caso, a sabedoria ou a fé bastariam no outro. Mas só precisamos de coragem justamente quando estas não bastam, ou por estarem ausentes, ou por serem, em relação a nossa angústia, sem pertinência ou sem eficácia. O saber, a sabedoria ou a opinião dão ou tiram ao medo seus objetos. Não dão coragem, dão a oportunidade de servir-se dela ou dispensá-la. Foi o que Jankélévitch bem viu: a coragem não é um saber, mas uma decisão, não é uma opinião, mas um ato. É por isso que a razão aqui não basta: “O raciocínio nos diz o que devemos fazer, se o devemos, mas não nos diz que devemos fazê-lo; e menos ainda ele mesmo faz o que diz.” Se há uma coragem da razão, ela está apenas em que a razão nunca tem medo, quero dizer que nunca é a razão que em nós se atemoriza ou se assusta. Cavaillès sabia disso, como também que a razão não basta para agir ou querer: não há coragem more geometrico, nem ciência corajosa. Vá demonstrar, sob tortura, que não se deve falar! Aliás, se essa demonstração fosse possível, quem poderia acreditar que bastasse? A razão é a mesma, em Cavaillès (que não falou…) e em qualquer outro. Mas a vontade não; mas a coragem não, e a coragem nada mais é que a vontade mais determinada e, diante do perigo ou do sofrimento, mais necessária. Toda razão é universal; toda coragem, singular. Toda razão é anônima; toda coragem, pessoal. É por isso, aliás, que é preciso coragem para pensar, às vezes, como é preciso para sofrer e lutar, porque ninguém pode pensar em nosso lugar – nem sofrer em nosso lugar, nem lutar em nosso lugar -, e porque a razão não basta, porque a verdade não basta, porque é necessário ainda superar em si tudo o que estremece ou resiste, tudo o que preferiria uma ilusão tranqüilizadora ou uma mentira confortável. Daí o que chamamos de coragem intelectual, que é a recusa, no pensamento, de ceder ao medo, a recusa de se submeter a outra coisa que não a verdade, à qual nada assusta e ainda que ela fosse assustadora. É também o que chamamos lucidez, que é a coragem do verdadeiro, mas a que nenhuma verdade basta. Toda verdade é eterna; a coragem só tem sentido na finitude e na temporalidade – na duração. Um deus não precisaria dela. Nem um sábio, talvez, se só vivesse nos bens imortais ou eternos evocados por Epicuro ou Spinoza. Mas isso não é possível, e é por isso que, de novo, precisamos de coragem. Coragem para durar e agüentar, coragem para viver e para morrer, coragem para suportar, para combater, para enfrentar, para resistir, para perseverar… Spinoza chama de firmeza de alma (animositas) esse “desejo pelo qual cada um se esforça por conservar seu ser sob o exclusivo ditame da razão”. Mas a coragem está no desejo, não na razão; no esforço, não no ditame. Trata-se sempre de perseverar em seu ser (é o que Éluard chamará de “o duro desejo de durar”), e toda coragem é feita de vontade. Não estou certo de que a coragem seja a virtude do começo, pelo menos que seja apenas isso, ou essencialmente isso: é preciso tanta a mesma coragem, às vezes mais, para continuar ou manter. Mas é verdade que continuar é recomeçar sempre e que a coragem, não podendo ser “nem entesourada nem capitalizada”, só continua sob essa condição, como uma duração sempre incoativa do esforço, como um começo sempre recomeçado, apesar do cansaço, apesar do medo, e por isso sempre necessário e sempre difícil… “É preciso, pois, sair do medo pela coragem”, dizia Alain; “e esse movimento, que começa cada uma de nossas ações, também está, quando é retido, no nascimento de cada um de nossos pensamentos.” O medo paralisa, e toda ação, mesmo de fuga, furta-se um pouco a ele. A coragem triunfa sobre o medo, pelo menos tenta triunfar, e já é corajoso tentar. Qual virtude, de outro modo? Qual vida? Qual felicidade? Um homem de alma forte, lemos em Spinoza, “esforça-se por agir bem e manter-se alegre”; confrontado com os obstáculos, que são muitos, esse esforço é a própria coragem. Como toda virtude, a coragem só existe no presente. Ter tido coragem não prova que se terá, nem mesmo que se tem. É todavia uma indicação positiva e, literalmente, encorajadora. O passado é objeto de conhecimento e, por isso, mais significativo, moralmente falando, que o futuro, que é apenas objeto de fé ou de esperança – apenas de imaginação. Querer dar amanhã ou outro dia não é ser generoso. Querer ser corajoso na semana que vem ou daqui a dez anos não é coragem. Trata-se apenas de projetos de querer, de decisões sonhadas, de virtudes imaginárias. Aristóteles (ou o discípulo que fala em seu nome) evoca com graça, na Grande moral, os que “se fazem de corajosos porque o risco é para ser corrido daqui a dois anos, e morrem de medo quando estão cara a cara e nariz a nariz com o perigo”. Heróis imaginários, poltrões reais. Jankélévitch, que cita essa frase, acrescenta com razão que “a coragem é a intenção do instante em instância”, que o instante corajoso designa nisso “nosso ponto de tangência com o futuro próximo”, em suma, que se trata de ser corajoso, não amanhã ou daqui a pouco, mas “no ato”. Muito bem. Mas o que é esse instante em instância, em contato com o futuro próximo ou imediato, senão o presente que dura? Não precisamos de coragem para enfrentar o que já não é, claro; mas tampouco para superar o que ainda não é. Nem o nazismo nem o fim do mundo, nem meu nascimento nem minha morte são para mim objetos de coragem (a idéia da morte talvez, sendo atual, como também, sob certos aspectos, a idéia do nazismo ou do fim do mundo; mas uma idéia requer muitíssimo menos coragem, nesses domínios, que a própria coisa!). O que há de mais ridículo do que esses heróis por contumácia, que só enfrentam, imaginariamente é claro, perigos excluídos? Todavia, acrescenta Jankélévitch, “também não há ar para a respiração da coragem se a ameaça já foi realizada e se, quebrando o encanto do possível, suspendendo os transes da incerteza, o perigo transformado em infortúnio deixa de ser perigo”. É tão certo assim? Se fosse verdade, a coragem não seria necessária, seria até inútil, contra a dor, física ou moral, contra a enfermidade, contra o luto. Em que situação, porém, precisamos mais dela? Aquele que resiste à tortura, como Cavaillès ou Jean Moulin, quem pode crer que é antes de tudo o futuro, antes de tudo o perigo, que mobilizam sua coragem (que futuro é pior que o presente deles? Que perigo é pior que a tortura?), e não a atroz atualidade do sofrimento? Dirão que a escolha é, então, se é que há escolha, fazer cessar ou continuar esse horror, o que, como toda escolha, só tem sentido com referência ao futuro. Sem dúvida: o presente é uma duração, muito mais que um instante, uma distensão, como dizia santo Agostinho, sempre proveniente do passado, sempre voltada para o futuro. E é necessário coragem, dizia eu, para durar e agüentar, para suportar sem se quebrar essa tensão que nós somos, ou essa divisão entre passado e futuro, entre memória e vontade. É a própria vida, e o esforço de viver (o conatus de Spinoza). Mas esse esforço está sempre presente e, na maioria das vezes, é difícil. Se é o futuro que tememos, é o presente que suportamos (inclusive nosso medo presente do futuro), e a realidade atual do infortúnio, do sofrimento ou da angústia não requer menos coragem, nesse presente que dura, do que a ameaça do perigo ou os transes, como diz Jankélévitch, da incerteza. É verdade para a tortura, e para qualquer tortura. O canceroso, em fase terminal, quem acredita que é apenas diante do futuro, apenas diante da morte, que ele precisa de coragem? E a mãe que perdeu o filho? “Tenha coragem”, dizem-lhe. Se isso se refere ao futuro, como todo conselho, não quero dizer que a coragem seja aqui necessária contra um perigo, ou risco ou uma ameaça, mas sim contra um infortúnio presente, atrozmente presente, e que só está indefinidamente por vir porque é e será, doravante – pois o passado e a morte são irrevogáveis – definitivamente presente. É preciso coragem ainda para suportar uma deficiência, para assumir um fracasso ou um erro, e também essas coragens referem-se antes de tudo ao presente que dura e ao futuro apenas enquanto é, enquanto não pode ser mais que a continuação desse presente. O cego precisa de maior coragem do que aquele que enxerga bem, e não apenas porque a vida para ele é mais perigosa. Irei mais longe até. Na medida em que o sofrimento é pior que o medo, pelo menos sempre que o é, é necessária maior coragem para suportá-lo. Isso depende, é claro, dos sofrimentos e dos medos. Consideremos então um sofrimento extremo: a tortura; e um medo extremo: o medo da morte, o medo da tortura, ambas iminentes. Quem não percebe que é preciso mais coragem para resistir à tortura do que à sua ameaça, ainda que perfeitamente determinada e crível? E quem não preferiria suicidar-se, apesar do medo, a sofrer a esse ponto? Quantos não o fizeram? Quantos lamentaram não ter meios para fazê-lo? Pode ser que seja preciso ter coragem para se suicidar, e sem dúvida sempre é preciso. Menos, contudo, do que para resistir à tortura. Embora a coragem diante da morte seja a coragem das coragens, quero dizer, o modelo ou o arquétipo de todas, ela não é necessariamente nem sempre a maior. É a mais simples, porque a morte é o mais simples. É a mais absoluta, se quisermos, porque a morte é absoluta. Mas não é a maior, porque a morte não é o pior. O pior é o sofrimento que dura, é o horror que se prolonga, ambos atuais, atrozmente atuais. E no próprio medo, quem não vê que é preciso coragem para superar a atualidade da angústia, tanto quanto e às vezes mais do que para enfrentar a virtualidade do perigo? Em resumo, a coragem não se refere apenas ao futuro, ao medo, à ameaça; refere-se também ao presente, e sempre está ligada à vontade, muito mais do que à esperança. Os estóicos, que dela fizeram uma filosofia, sabiam disso. Só esperamos o que não depende de nós; só queremos o que depende de nós. É por isso que a esperança só é uma virtude para os crentes, ao passo que a coragem o é para qualquer homem. Ora, o que é necessário para ser corajoso? Basta querê-lo, em outras palavras, sê-lo de fato. Mas não basta esperá-lo, apenas os covardes se contentam com isso. Isso nos leva ao famoso tema da coragem do desespero. “É nos casos mais perigosos e mais desesperados que se empregam mais ousadia e coragem”, escrevia Descartes; e embora isso não exclua a esperança, como ele também diz, exclui que a esperança e a coragem tenham o mesmo objeto ou se confundam. O herói, diante da morte, bem pode esperar a glória ou a vitória póstuma de suas idéias. Mas essa esperança não é o objeto de sua coragem e não poderia fazer as vezes dela. Os covardes esperam a vitória, tanto quanto os heróis; e, sem dúvida, só se foge tendo esperança da salvação. Essas esperanças não são coragem, nem bastam, infelizmente, para dá-la. Isso não quer dizer, é claro, que a esperança sempre seja uma quantidade desprezível! Ela pode reforçar a coragem ou sustentá-la, isso é ponto pacífico, e Aristóteles já o havia ressaltado: é mais fácil ser bravo no combate quando se espera vencê-lo. Mas isso é ser mais corajoso? Pode-se pensar o contrário: já que, de fato, a esperança fortalece a coragem, é necessário ser corajoso, sobretudo, quando falta esperança; e o verdadeiro herói será aquele que for capaz de enfrentar não apenas o risco, que risco sempre há, mas, se preciso, a certeza da morte ou, mesmo, pode acontecer, da derrota final. É a coragem dos vencidos, que não é menor, quando estes a têm, nem menos meritória, longe disso, do que a dos vencedores. Que podiam esperar os insurretos do gueto de Varsóvia? Nada para eles mesmos, pelo menos, e por isso mesmo sua coragem foi ainda mais patente e heróica. Por que combater então? Porque é preciso. Porque o contrário seria indigno. Ou pela beleza do gesto, como se diz, estando entendido que essa beleza é de ordem ética e não estética. “As pessoas verdadeiramente corajosas só agem pela beleza do gesto corajoso”, escrevia Aristóteles, só “pelo amor ao bem”, como também se pode traduzir, ou “impelidas pelo sentimento da honra”. As paixões, sejam elas cólera, ódio ou esperança, também podem intervir e prestar seu concurso. Mas a coragem, sem elas, ainda é possível, e mais necessária, e mais virtuosa. Lê-se, inclusive, em Aristóteles que a coragem, em sua forma mais elevada, é “sem esperança”, ou até “antinômica da esperança; pelo simples fato de não ter mais nenhuma esperança, o homem corajoso diante de uma doença mortal o é mais do que o marinheiro na tempestade; daí ‘os que a esperança sustenta já não serem, por isso, bravos verdadeiros’, assim como aqueles que têm a convicção de serem mais fortes, de poderem triunfar no combate”. Não estou certo de que se possa ir tão longe, ou pelo menos que isso não seja, a partir de uma interpretação um tanto unilateral, levar Aristóteles até onde eu aceitaria chegar, por minha parte e pelo menos no abstrato, porém mais longe, temo, do que ele queria chegar ou do que consentiria em nos acompanhar. Não tem importância, é só história da filosofia. A vida nos ensina que é preciso coragem para suportar o desespero, e também que o desespero, às vezes, pode dar coragem. Quando não há mais nada a esperar, não há mais nada a temer: eis toda coragem disponível, e contra toda esperança, para um combate presente, para um sofrimento presente, para uma ação presente! É por isso que, explicava Rabelais, “de acordo com a verdadeira disciplina militar, nunca se deve pôr o inimigo em situação de desespero, porque essa necessidade multiplica sua força e aumenta sua coragem”. Pode-se temer tudo de quem nada teme. E o que temeriam, se nada mais têm a esperar? Os militares sabem disso e tratam de evitá-lo, do mesmo modo que os diplomatas ou os estadistas. Toda esperança dá margem a outra; todo desespero, a si. Para se suicidar? Muitas vezes há coisa melhor a ser feita: a morte nada mais é que uma esperança como outra. Alain, que foi soldado, e soldado corajoso, encontrou na guerra alguns heróis de verdade. Eis o que diz deles: “Sem dúvida, é preciso não esperar mais nada para ser totalmente bravo; e vi tenentes e subtenentes de infantaria que pareciam ter posto um ponto final em sua vida; sua alegria me dava medo. Nisso, eu estava na retaguarda; sempre estamos na retaguarda de alguém.” É verdade, e não só na guerra. Alain evoca em outra página a coragem de Lagneau, não mais no combate mas numa sala de aula, seu “desespero absoluto”, graças ao qual ele pensava “com alegria, sem nenhum temor e sem nenhuma esperança”. Mas o que prova nosso medo, a não ser que precisamos de coragem? É igualmente conhecida a fórmula de Guilherme de Orange: “Não é necessário esperar para empreender, nem ter êxito para perseverar.” Diziam-no taciturno, o que não o impediu nem de agir, nem de ousar. Onde se viu que só os otimistas sabem o que é coragem? Sem dúvida é mais fácil empreender ou perseverar quando a esperança ou o êxito estão à vista. Mas, quando é mais fácil, tem-se menos necessidade de coragem. O que Aristóteles mostrou claramente, em todo caso, e com o que cumpre concluir, é que a coragem é inseparável da medida. Não quer dizer, é claro, que não se possa ser extremamente corajoso, ou enfrentar um perigo extremo. Mas que é necessário proporcionar os riscos que se correm ao fim que se tem em vista: é bonito arriscar a vida por uma causa nobre, mas insensato fazê-lo por bagatelas ou por puro fascínio pelo perigo. É o que distingue o corajoso do temerário e graças ao que a coragem – como toda virtude, segundo Aristóteles – se mantém no cume, entre esses dois abismos (ou no meio-termo, entre esses dois excessos) que são a covardia e a temeridade: o covarde é submisso demais a seu medo, o temerário despreocupado demais com sua vida ou com o perigo, para poderem ser, um ou outro, verdadeiramente (isto é, virtuosamente) corajosos. A ousadia, ainda que extrema, só é assim virtuosa se temperada pela prudência – o medo contribui para ela, a razão a provê. “A virtude de um homem livre se revela tão grande quanto ele evita os perigos”, escreve Spinoza, “como quando os supera; ele escolhe com a mesma firmeza de alma, ou presença de espírito, a fuga ou o combate.” Quanto ao resto, é bom lembrar que a coragem não é o mais forte, mas sim o destino ou, é a mesma coisa, o acaso. A própria coragem está ligada a ele (basta querer, mas quem escolhe sua vontade?) e a ele permanece submetida. Para todo homem, há o que ele pode e o que ele não pode suportar. O fato de encontrar ou não, antes de morrer, o que o vai abater é uma questão de sorte, pelo menos tanto quanto de mérito. Os heróis sabem disso, quando são lúcidos: é o que os torna humildes diante de si mesmos e misericordiosos diante dos outros. Todas as virtudes se relacionam, e todas se relacionam com a coragem. /André Comte-Sponville