sábado, 14 de março de 2009

A JUSTIÇA !

Com a justiça abordamos a última das quatro virtudes cardeais. Precisaremos das outras três, a tal ponto o tema é imenso. E dela mesma, a tal ponto ele está exposto aos interesses e aos conflitos de todas as ordens. Da justiça, aliás, não nos podemos isentar, qualquer que seja a virtude que consideremos. Falar injustamente de uma delas, ou de várias, seria traí-las, e é por isso talvez que, sem fazer as vezes de nenhuma, ela contém todas as demais. A fortiriori ela é necessária, tratando-se dela mesma. Mas quem pode gabar-se de conhecê-la ou de possuí-la totalmente? “A justiça não existe”, dizia Alain; “a justiça pertence à ordem das coisas que se devem fazer justamente porque não existem.” E acrescentava: “A justiça existirá se a fizermos. Eis o problema humano.” Muito bem – mas que justiça? E como fazê-la, sem saber o que ela é ou deve ser? Das quatro virtudes cardeais, a justiça é sem dúvida a única que é absolutamente boa. A prudência, a temperança ou a coragem só são virtudes a serviço do bem, ou relativamente a valores – por exemplo, a justiça – que as superam ou as motivam. A serviço do mal ou da injustiça, prudência, temperança e coragem não seriam virtudes, mas simples talentos ou qualidades do espírito ou do temperamento, como diz Kant. Talvez não seja inútil recordar este texto famoso: De tudo o que é possível conceber no mundo, e mesmo em geral fora do mundo, não há nada que possa ser considerado bom sem restrições, a não ser, apenas, uma vontade boa. A inteligência, a fineza, a faculdade de julgar e os demais talentos do espírito, qualquer que seja o nome pelo qual os designemos, ou então a coragem, a decisão, a perseverança nos desígnios, como qualidades do temperamento, são, sem dúvida nenhuma, sob muitos aspectos, coisas boas e desejáveis; mas esses dons da natureza também podem se tornar extremamente ruins e funestos, se a vontade que deve utilizá-los, cujas disposições próprias chamam-se por isso caráter, não é boa. Kant evoca aqui apenas a coragem, mas quem não vê que o mesmo se poderia dizer da prudência ou da temperança? O assassino, ou o tirano, pode praticar uma e outra, conhecemos mil exemplos disso, sem ser por isso virtuoso no que quer que seja. Se, ao contrário, ele for justo, seu ato imediatamente mudará de sentido ou de valor. Irão me perguntar o que é um justo assassinato, uma justa tirania… É reconhecer pelo menos a singularidade da justiça. Porque um assassino prudente ou um tirano sóbrio nunca surpreenderam ninguém. Em suma, a justiça é boa em si, como a boa vontade de Kant, e é por isto que esta não poderia ignorá-la. Cumprir seu dever, por certo; mas não à custa da justiça, nem contra ela! Como seria possível, de resto, uma vez que o dever a supõe, o que estou dizendo, uma vez que o dever é a própria justiça, como exigência e como obrigação? A justiça não é uma virtude como as outras. Ela é o horizonte de todas e a lei de sua coexistência. “Virtude completa”, dizia Aristóteles. Todo valor a supõe; toda humanidade a requer. Não é, porém, que ela faça as vezes da felicidade (por que milagre?); mas nenhuma felicidade a dispensa. É um problema que encontramos em Kant e que voltaremos a encontrar, desculpem-me se cito poucos, em Dostoievski, Bergson, Camus ou Jankélévitch: se para salvar a humanidade fosse preciso condenar um inocente (torturar uma criança, dizia Dostoievski), teríamos de nos resignar a fazê-lo? Não, respondem eles. A cartada não valeria o jogo, ou antes, não seria uma cartada, mas uma ignomínia. “Porque, se a justiça desaparece”, escreve Kant, “é coisa sem valor o fato de os homens viverem na Terra.” O utilitarismo chega aqui a seu limite. Se a justiça fosse apenas um contrato de utilidade, como queria por exemplo Epicuro, apenas uma otimização do bem-estar coletivo, como queriam Bentham ou Mill, poderia ser justo, para a felicidade de quase todos, sacrificar alguns, sem seu acordo e ainda que fossem perfeitamente inocentes e indefesos. Ora, é o que a justiça proíbe, ou deve proibir. Rawls tem razão aqui, após Kant: a justiça é mais e melhor do que o bem-estar e a eficácia, e não poderia ser sacrificada a eles, nem mesmo em nome da felicidade da maioria. A que, aliás, se poderia sacrificar legitimamente a justiça, uma vez que sem ela não haveria legitimidade nem ilegitimidade? E em nome de que, uma vez que mesmo a humanidade, mesmo a felicidade, mesmo o amor não valeriam absolutamente nada sem a justiça? Ser injusto por amor é ser injusto – e o amor não é mais que favoritismo ou parcialidade. Ser injusto para sua própria felicidade ou para a felicidade da humanidade é ser injusto – e a felicidade nada mais é que egoísmo ou conforto. A justiça é aquilo sem o que os valores deixariam de ser valores (não seriam mais que interesses ou móbeis), ou não valeriam nada. Mas o que é ela? O que ela vale? A justiça se diz em dois sentidos: como conformidade ao direito (jus, em latim) e como igualdade ou proporção. “Não é justo”, diz a criança que tem menos que as outras, ou menos do que julga lhe caber; e dirá a mesma coisa a seu amiguinho que trapaceia – nem que seja para restabelecer uma igualdade entre eles -, não respeitando as regras, escritas ou não-escritas, do jogo que os une e os opõe. Do mesmo modo, os adultos julgarão injustas tanto a diferença demasiado gritante das riquezas (é nesse sentido sobretudo que se fala de justiça social) quanto a transgressão da lei (que a justiça, isto é, no caso, a instituição judiciária, terá de conhecer e julgar). O justo, inversamente, será aquele que não viola nem a lei nem os interesses legítimos de outrem, nem o direito (em geral) nem os direitos (dos particulares), em suma, aquele que só fica com a sua parte dos bens, explica Aristóteles, e com toda a sua parte dos males. A justiça situa-se inteira nesse duplo respeito à legalidade, na Cidade, e à igualdade entre indivíduos: “o justo é o que é conforme a lei e o que respeita a igualdade, e o injusto o que é contrário à lei e o que falta com a igualdade.” Esses dois sentidos, embora ligados (é justo que os indivíduos sejam iguais diante da lei), são, contudo, diferentes. Como legalidade, a justiça existe de fato, e sem outro valor que não o circular: “todas as ações prescritas pela lei são justas, (nesse) sentido”, observava Aristóteles; mas o que isso prova, se a lei não é justa? E Pascal, mais cinicamente: “A justiça é o que é estabelecido; assim, todas as nossas leis estabelecidas serão necessariamente consideradas justas sem ser examinadas, pois são estabelecidas.” Que Cidade, de outro modo? E que justiça, se o juiz não fosse obrigado a respeitar a lei – e a letra da lei – mais que suas próprias convicções morais ou políticas? O fato da lei (a legalidade) importa mais que seu valor (sua legitimidade), ou antes faz as vezes deste. Não há Estado de outro modo, não há direito de outro modo – logo, não há Estado de direito. “Auctoritas, non veritas, facit legem”: é a autoridade, não a verdade, que faz a lei. Isso, que podíamos ler em Hobbes, governa também nossas democracias. Os mais numerosos, não os mais justos ou os mais inteligentes, prevalecem e fazem a lei. Positivismo jurídico, diz-se hoje, tão insuperável com relação ao direito quanto insuficiente com relação ao valor. A justiça? O soberano decide, e é o que se chama lei propriamente. Mas o soberano – mesmo que seja o povo – nem sempre é justo. Pascal mais uma vez: “A igualdade dos bens é justa, mas…” Mas o soberano decidiu de outro modo: a lei protege a propriedade privada, tanto em nossas democracias como na época de Pascal, e garante assim a desigualdade das riquezas. Quando a igualdade e a legalidade se opõem, onde está a justiça? A justiça, lemos em Platão, é o que reserva a cada um sua parte, seu lugar, sua função, preservando assim a harmonia hierarquizada do conjunto. Seria justo dar a todos as mesmas coisas, quando eles não têm nem as mesmas necessidades nem os mesmos méritos? Exigir de todos as mesmas coisas, quando eles não têm nem as mesmas capacidades nem os mesmos encargos? Mas como manter então a igualdade, entre homens desiguais? Ou a liberdade, entre iguais? Discutia-se isso na Grécia; continua-se a discuti-lo. O mais forte prevalece, é o que se chama política: “A justiça está sujeita à discussão. A força é reconhecível e indiscutível. Por isso não se pôde dar força à justiça, porque a força contradisse a justiça e disse que ela era injusta, e disse que era ela que era justa. Assim, não se podendo fazer que o justo fosse forte, fez-se que o forte fosse justo.” É um abismo que a própria democracia seria incapaz de superar: “A pluralidade é o melhor caminho, porque é visível e tem força para se fazer obedecer; no entanto, essa é a opinião dos menos hábeis”, e dos menos justos, por vezes. Rousseau, muito útil mas incerto. Nada garante que a vontade geral seja sempre justa (a não ser que se defina a justiça como a vontade geral, círculo que esvaziaria evidentemente essa garantia de qualquer valor, se não de qualquer conteúdo); portanto, nada poderia condicionar sua validade. Todos os democratas sabem disso. Todos os republicanos sabem disso. Lei é lei, seja justa ou não. Mas ela não é, portanto, a justiça, o que nos remete ao segundo sentido. Não mais a justiça como fato (a legalidade), mas a justiça como valor (a igualdade, a eqüidade) ou, aí estamos, como virtude. Esse segundo ponto concerne à moral, mais que ao direito. Quando a lei é injusta, é justo combatê-la – e pode ser justo, às vezes, violá-la. Justiça de Antígona, contra a de Creonte. Dos resistentes, contra a de Vichy. Dos justos, contra a dos juristas. Sócrates, condenado injustamente, recusou a salvação que lhe propunham pela fuga, preferindo morrer respeitando as leis, dizia ele, a viver transgredindo-as. Era levar longe demais o amor à justiça, parece-me, ou antes, confundi-la erroneamente com a legalidade. É justo sacrificar a vida de um inocente a leis iníquas ou iniquamente aplicadas? É claro em todo caso que tal atitude, mesmo que sincera, só é tolerável para si: o heroísmo de Sócrates, já discutível em seu princípio, tornar-se-ia pura e simplesmente criminoso se ele sacrificasse às leis qualquer outro inocente que não ele mesmo. Respeitar as leis, sim, ou pelo menos obedecer a elas e defendê-las. Mas não à custa da justiça, não à custa da vida de um inocente! Para quem podia salvar Sócrates, mesmo que ilegalmente, era justo tentar – e só Sócrates podia legitimamente recusar a tentativa. A moral vem antes, a justiça vem antes, pelo menos quando se trata do essencial, e é por aí, talvez, que se reconhece o essencial. O essencial? A liberdade de todos, a dignidade de cada um e os direitos, primeiramente, do outro. Lei é lei, dizia eu, seja justa ou não; nenhuma democracia, nenhuma república seria possível se apenas obedecêssemos as leis que aprovamos. Sim. Mas nenhuma seria aceitável se fosse necessário, por obediência, renunciar à justiça ou tolerar o intolerável. Questão de grau, que não se pode resolver de uma vez por todas. É o domínio da casuística, exatamente, no bom sentido do termo. Às vezes é necessário entrar na luta clandestina, às vezes obedecer ou desobedecer tranqüilamente… O desejável é, evidentemente, que leis e justiça caminhem no mesmo sentido, e é nisso que cada um, enquanto cidadão, tem a obrigação moral de se empenhar. A justiça não pertence a ninguém, a nenhum campo, a nenhum partido; todos são moralmente obrigados a defendê-la. Estou me exprimindo mal. Os partidos não têm moral. A justiça deve ser preservada não pelos partidos, mas pelos indivíduos que os compõem ou resistem a eles. A justiça só existe e só é um valor, inclusive, quando há justos para defendê-la. Mas o que é um justo? Aí está o mais difícil, talvez. Aquele que respeita a legalidade? Não, pois ela pode ser injusta. Aquele que respeita a lei moral? É o que podemos ler em Kant, que, no entanto, apenas recua o problema: o que é a lei moral? Conheci vários justos que não pretendiam conhecê-la, ou mesmo que negavam totalmente sua existência. Veja-se Montaigne, em nossas Letras. Se a lei moral existisse, aliás, ou se fosse conhecida por nós, teríamos menos necessidade dos justos: a justiça bastaria. Kant, por exemplo, pretendia deduzir da justiça, ou da idéia que tinha dela, a necessidade absoluta da pena de morte para todo assassino – o que outros justos recusaram, como se sabe, e recusam. Esses desacordos entre justos são essenciais à justiça, pois assinalam sua ausência. A justiça não é deste mundo, nem de nenhum outro. Aristóteles é que tem razão, contra Platão e contra Kant, pelo menos é assim que o leio: não é a justiça que faz os justos, são os justos que fazem a justiça. Como, se não a conhecem? Por respeito à legalidade, como vimos, e à igualdade. Mas legalidade não é justiça; e como a igualdade poderia bastar? Cita-se com freqüência o juízo de Salomão; é psicologia, não é justiça – ou, antes, só é justo o segundo juízo, o que devolve o filho à sua verdadeira mãe e renuncia assim à igualdade. Quanto ao primeiro, que queria cortar a criança em dois, não seria justiça, mas barbárie. A igualdade não é tudo. Seria justo o juiz que infligisse a todos os acusados a mesma pena? O professor que atribuísse a todos os alunos a mesma nota? Dir-se-á que penas ou notas devem ser, em vez de iguais, proporcionais ao delito ou ao mérito. Sem dúvida, mas quem julgará isso? E segundo que tabela? Para um roubo, quanto? Para um estupro? Para um assassinato? E em tais circunstâncias? E em tais outras? A lei responde mais ou menos, e os júris, e os juristas. Mas a justiça não. Mesma coisa no ensino. Deve-se recompensar o aluno estudioso ou o aluno dotado? O resultado ou o mérito? Ambos? Mas como fazer, quando se trata de um concurso em que só se podem aprovar uns recusando-se os outros? E segundo quais critérios, que deveriam ser, eles próprios, avaliados? Segundo que normas, que deveriam ser, elas próprias, julgadas? Os professores respondem como podem, pois é preciso responder; mas a justiça não. A justiça não responde, a justiça nunca responde. Por isso que é preciso haver juízes, nos tribunais, e professores para corrigir as provas… Espertos os que fazem isso com a consciência tranqüila, porque conhecem a justiça! Os justos são, ao contrário, os que a ignoram, parece-me, que reconhecem ignorá-la e que a fazem como podem, se não às cegas, seria exagero dizê-lo, pelo menos sob risco (o maior, infelizmente, não são eles que correm) e na incerteza. Cabe aqui citar novamente Pascal: “Só há dois tipos de homens: os justos que se crêem pecadores e os pecadores que se crêem justos.” Mas nunca sabemos em qual dessas categorias nos classificamos – se soubéssemos já estaríamos na outra! No entanto, é necessário um critério, ainda que aproximativo, e um princípio, ainda que incerto. O princípio deve estar do lado de certa igualdade, ou reciprocidade, ou equivalência, entre indivíduos, sem se reduzir a ela. É a origem da palavra eqüidade (de aequus, igual), que seria sinônimo de justiça – voltaremos a isso – se não fosse também e sobretudo sua perfeição. Isso parece indicar novamente o símbolo da balança, cujos dois pratos estão em equilíbrio e devem estar. A justiça é a virtude da ordem, mas eqüitativa, e da troca, mas honesta. Mutuamente vantajosa? É esse, claro, o caso mais favorável, talvez o mais freqüente (quando compro pão na minha padaria, eu e o padeiro achamos vantagem nesse comércio); mas como garantir que seja sempre assim? Garanti-lo não é possível; mas simplesmente constatar que a ordem ou a troca não seriam justas de outro modo. Se procedo a uma troca que me é desvantajosa (por exemplo, se troco minha casa por um pão), devo estar louco, mal-informado ou forçado, o que, nos três casos, esvaziaria a troca não necessariamente de todo valor jurídico (pelo menos, cabe ao soberano decidir), mas, claramente, de toda justiça. A troca, para ser justa, deve efetuar-se entre iguais, ou pelo menos nenhuma diferença (de fortuna, de poder, de saber…) entre os parceiros deve lhes impor uma troca que seja contrária a seus interesses ou a suas vontades livres e esclarecidas, tais como se exprimiriam numa situação de igualdade. Ninguém se engana quanto a isso – o que não quer dizer que todo o mundo se submeta! Aproveitar-se da ingenuidade de uma criança, da cegueira de um louco, do engano de um ignorante ou da aflição de um miserável para obter deles, sem que saibam ou por coerção, um ato contrário a seus interesses ou a suas intenções é ser injusto, mesmo que a legislação, em determinados países ou circunstâncias, não se oponha formalmente. A vigarice, a extorsão e a usura são injustas, não menos que o roubo. E o simples comércio só é justo quando respeita, entre comprador e vendedor, certa paridade, tanto na quantidade de informações disponíveis, concernentes ao objeto da troca, quanto nos direitos e deveres de cada um. Digamos mais: o próprio roubo pode tornar-se justo, talvez, quando a propriedade é injusta. Mas quando ela é injusta, a não ser quando avilta demais as exigências de certa igualdade, pelo menos relativa, entre os homens? Dizer que “a propriedade é roubo”, como fazia Proudhon, é sem dúvida exagerado, até mesmo impensável (pois é negar uma propriedade que o roubo, no entanto, supõe). Mas quem pode desfrutar, em toda justiça, o supérfluo quando outros morrem por não ter o necessário? “A igualdade dos bens seria justa”, dizia Pascal. Sua desigualdade, em todo caso, não poderia absolutamente ser justa, pois condena uns à miséria ou à morte, enquanto outros acumulam riquezas sobre riquezas e prazeres sobre fastios. A igualdade que é essencial à justiça é, portanto, menos a igualdade entre os objetos trocados, a qual é sempre discutível e quase sempre admissível (de outro modo não haveria troca), do que entre os sujeitos que trocam – igualdade não de fato, é claro, mas de direito, o que supõe, no entanto, que sejam todos igualmente informados e livres, pelo menos no que diz respeito a seus interesses e às condições da troca. Dir-se-á que tal igualdade nunca se realizou completamente. Decerto, mas os justos são aqueles que tendem a ela; os injustos, os que a ela se opõem. Você vende uma casa, depois de ter morado nela durante anos; você a conhece necessariamente melhor do que qualquer comprador possível. Mas a justiça é, então, informar o eventual comprador acerca de qualquer defeito, aparente ou não, que possa existir nela, e mesmo, embora a lei não obrigue a tanto, acerca de algum problema com a vizinhança. E, sem dúvida, nem todos nós fazemos isso, nem sempre, nem completamente. Mas quem não vê que seria justo fazê-lo e que somos injustos não o fazendo? Um comprador se apresenta, você lhe mostra a casa. Deverá dizer-lhe que o vizinho é um bêbado que berra depois da meia-noite? Que as paredes são úmidas no inverno? Que o madeiramento está comido pelo cupim? A lei pode ordenar essa informação ou ignorar o problema, conforme os casos; mas a justiça sempre manda fazê-lo. Dir-se-á que seria difícil, com tais exigências, ou pouco vantajoso, vender casas… Pode ser. Mas onde se viu a justiça ser fácil e vantajosa? Só o é para quem a recebe ou dela beneficia, e melhor para ele; mas só é uma virtude em quem a pratica ou a faz. Devemos então renunciar a nosso próprio interesse? Claro que não. Mas devemos submetê-lo à justiça, e não o contrário. Senão? Senão, contente-se com ser rico, responde Alain, e não tente ainda por cima ser justo. O princípio, portanto, é mesmo a igualdade, como vira Aristóteles, mas antes de tudo e sobretudo a igualdade dos homens entre si, tal como resulta da lei ou tal como é moralmente pressuposta, pelo menos em direito e ainda que contra as desigualdades de fato mais evidentes, mais bem estabelecidas (inclusive juridicamente), quando não mais respeitáveis. A riqueza não dá nenhum direito particular (ela dá um poder particular, mas o poder, precisamente, não é a justiça). O gênio ou a santidade não dão nenhum direito particular. Mozart tem de pagar seu pão, como qualquer um. E são Francisco de Assis, diante de um tribunal verdadeiramente justo, não teria nem mais nem menos direitos do que qualquer outro. A justiça é a igualdade, mas a igualdade dos direitos, sejam eles juridicamente estabelecidos ou moralmente exigidos. É o que Alain confirma, após Aristóteles, e ilustra: “A justiça é a igualdade. Não entendo com isso uma quimera, que existirá, talvez, algum dia; entendo a relação que qualquer troca justa logo estabelece entre o forte e o fraco, o sábio e o ignorante, e que consiste no fato de que, por uma troca mais profunda e inteiramente generosa, o forte e sábio quer supor no outro uma força e uma ciência igual à sua, fazendo-se assim conselheiro, juiz e reparador.” Quem vende um carro usado sabe perfeitamente disso, assim como quem o compra, e é nisso, sobre a justiça, que estão de acordo, quase sempre, mesmo que nenhum dos dois a respeite absolutamente. Como seria alguém injusto, se não soubesse o que quer dizer justiça? Ora, o que um e outro sabem, por menos que reflitam sobre o assunto, é que sua transação só será justa se, e somente se, for tal que pessoas iguais – em poder, saber, direitos… - poderiam consentir nela. Esse condicional é muito bem denominado: a justiça é uma condição de igualdade, à qual nossas trocas devem submeter-se. Isso também fornece o critério ou, como diz Alain, a regra de ouro da justiça: “Em todo contrato e em toda troca ponha-se no lugar do outro, mas com tudo o que você sabe e, supondo-se tão livre das necessidades quanto um homem pode sê-lo, veja se, no lugar dele, você aprovaria essa troca ou esse contrato.” Regra de ouro, lei de bronze: há coerção mais rigorosa e mais exigente? É querer a troca apenas entre sujeitos iguais e livres, e é nisso que a justiça, mesmo como valor, tem a ver tanto com a política como com a moral. “É justa”, dizia Kant, “toda ação que permite, ou cuja máxima permite, que a livre vontade de qualquer um coexista com a liberdade de qualquer outro, segundo uma lei universal.” Essa coexistência das liberdades sob uma mesma lei supõe sua igualdade, pelo menos de direito, ou antes ela a realiza, e somente ela: é a própria justiça, sempre a fazer e refazer, e sempre ameaçada. Isso tem a ver com a política, dizia eu. Postular sujeitos livres e iguais (livres, logo iguais) é o princípio de toda democracia verdadeira e o cadinho dos direitos humanos. É nisso que a teoria do contrato social, muito mais que a do direito natural, é essencial à nossa modernidade. São duas ficções, sem dúvida, mas uma pressupõe uma realidade, o que é sempre vão (se existisse um direito natural, não precisaríamos fazer a justiça: bastaria ministrá-la), enquanto a outra afirma um princípio ou uma vontade. O que está implicado, na idéia de contrato original, em Spinoza ou Locke, como em Rousseau ou Kant, é menos a existência de fato de um livre acordo entre iguais (tal contrato, nossos autores sabem muito bem, nunca existiu), do que a postulação de direito de uma liberdade igual, para todos os membros de um corpo político, pelo que são possíveis e necessários acordos que, de fato, conjuguem – e é aí que voltamos a encontrar Aristóteles – a igualdade (pois toda liberdade é postulada como igual a qualquer outra) e a legalidade (pois esses acordos podem ter, em determinadas condições, força de lei). Kant, mais claramente talvez do que Rousseau, Locke ou Spinoza, mostrou muito bem que tal acordo original era apenas hipotético, mas que essa hipótese era necessária a toda representação não-teológica do direito e da justiça: Eis, portanto, um contrato original, e unicamente sobre ele pode se fundar entre os homens uma constituição civil, logo inteiramente legítima, e constituída uma república. Mas, esse contrato (…), não é de modo algum necessário supô-lo como tal (…). Ao contrário, é uma simples Idéia da razão, mas ela tem uma realidade (prática) indubitável, no sentido de que obriga todo legislador a editar suas leis como podendo ter emanado da vontade coletiva de todo um povo e a considerar todo sujeito, na medida em que este quer ser cidadão, como se tivesse concorrido para formar, mediante seu sufrágio, uma vontade desse gênero. Pois é esta a pedra de toque da legitimidade de qualquer lei pública. Se, de fato, essa lei é de tal natureza que seja impossível que todo um povo possa lhe dar seu assentimento (se, por exemplo, ela decreta que uma classe determinada de sujeitos deve ter hereditariamente o privilégio da nobreza), ela não é justa; mas se é apenas possível que um povo lhe dê seu assentimento, então é um dever considerá-la justa, a supor inclusive que o povo se encontre presentemente numa situação ou numa disposição de sua maneira de pensar tais que, se consultado, provavelmente negaria seu assentimento. Em outras palavras, o contrato social “é a regra e não a origem da constituição do Estado; ele não é o princípio de sua fundação, mas de sua administração”; ele não explica um devir, mas esclarece um ideal – no caso “o ideal da legislação, do governo e da justiça pública”. Hipótese puramente reguladora, pois, mas necessária: o contrato original não permite conhecer a “origem do Estado”, nem o que ele é, mas “o que deve ser”. A idéia de justiça, como coexistência das liberdades sob uma lei pelo menos possível, não está ligada ao conhecimento, mas à vontade (da razão simplesmente prática, diria Kant). Ela não é um conceito teórico ou explicativo, para uma sociedade dada, mas um guia para o julgamento e um ideal para a ação. Rawls não dirá coisa muito diferente. Se for necessário imaginar os homens numa “posição original” em que cada um ignore o lugar que lhe é reservado na sociedade (é o que Rawls chama de “véu de ignorância”), é para se darem os meios de pensar a justiça como eqüidade (e não como simples legalidade ou utilidade), o que só é possível desde que se coloquem entre parênteses as diferenças individuais e o apego de cada um, mesmo quando justificado, a seus interesses egoístas ou contingentes. Posição puramente hipotética, também nesse caso, e até fictícia, mas operacional, visto que permite libertar, pelo menos parcialmente, a exigência de justiça dos interesses demasiado particulares que nos levam a ela e com os quais, quase irresistivelmente, somos tentados a confundi-la. A posição original, diria eu, é como que a suposta reunião de iguais sem ego (pois, nela supõe-se que cada um ignore não apenas “sua posição de classe ou seu status social”, mas até sua inteligência, sua força ou “os traços particulares de sua psicologia”), e é nisso que ela é esclarecedora. O eu é injusto, sempre, e não se pode pensar a justiça, por essa razão, a não ser colocando o eu fora de jogo ou, em todo caso, fora de condições de governar o julgamento. É a isso que leva a posição original, na qual ninguém jamais viveu, nem pode viver, mas na qual podemos tentar nos instalar, pelo menos provisória e artificialmente, para pensar e julgar. Tal modelo equivale a desviar do egoísmo (na posição original, “ninguém conhece sua situação na sociedade nem seus trunfos naturais, e é por isso que ninguém tem a possibilidade de elaborar princípios para sua vantagem própria”), sem com isso postular um improvável altruísmo (pois, nele, cada um se recusa a sacrificar seus interesses, ainda que indeterminados, em benefício de outrem). Isso esclarece muito sobre o que é a justiça: nem egoísmo nem altruísmo, mas a pura equivalência dos direitos atestada ou manifestada pela intercambialidade dos indivíduos. Trata-se de cada um contar por um, como se diz, mas isso só é possível – pois todos os indivíduos reais são diferentes e apegados a seus interesses próprios, que os opõem – desde que cada um possa colocar-se no lugar de qualquer outro, e é a isso que leva, de fato, o véu de ignorância que deve, segundo Rawls, caracterizar a posição original: cada um, ignorando quem ele será, só pode procurar seu interesse no interesse de todos e de cada um, e é esse interesse diferenciado (esse interesse ao mesmo tempo mutuamente e, pelo artifício do véu de ignorância, individualmente desinteressado!) que podemos chamar de justiça ou que permite, em todo caso, nos aproximarmos dela. Aliás, seria necessário nos perguntarmos se, já em Rousseau, a alienação total de cada um (no contrato original) e a dupla universalidade da lei (na República) não conduziam, pelo menos tendencialmente, a um resultado comparável. Mas isso nos levaria longe demais – ao pensamento político propriamente dito -, ao passo que se trata, antes, de voltarmos à moral, isto é, à justiça, não como exigência social, mas como virtude. As duas estão evidentemente vinculadas: o ego é esse vínculo, quando é deslindado. Ser justo, no sentido moral do termo, é recusar-se a se colocar acima das leis (pelo que a justiça, mesmo como virtude, permanece ligada à igualdade). O que significa isso, senão que a justiça é essa virtude pela qual cada um tende a superar a tentação inversa, que consiste em se colocar acima de tudo e se sacrificar a tudo, por conseguinte a seus desejos ou a seus interesses? O eu “é injusto em si”, escreve Pascal, “pelo fato de se fazer o centro de tudo”; e “incômodo aos outros, pelo fato de querer subjugá-los, porque cada eu é inimigo e gostaria de ser tirano de todos os outros”. A justiça é o contrário dessa tirania, o contrário, pois, do egoísmo e do egocentrismo (mas talvez seja o caso de toda virtude), ou, digamos, a recusa a se entregar a eles. Por isso ela está mais próxima do altruísmo ou – é este o único altruísmo, na verdade – do direito. Apenas mais perto, porém: amar é difícil demais, sobretudo quando se trata de nosso próximo (só sabemos amar, quando muito, nossos próximos), sobretudo quando se trata dos homens tais como são ou como parecem (Dostoievski, mais cruel que Lévinas, nota que muitos seriam mais fáceis de amar se não tivessem rosto…), amar exige demais, amar é perigoso demais, amar, numa palavra, é nos pedir demais! Diante do desmedido da caridade, para a qual o outro é tudo, diante do desmedido do egoísmo, para o qual o eu é tudo, a justiça se mantém na medida que sua balança simboliza, em outras palavras, no equilíbrio ou na proporção: a cada um sua parte, nem de mais nem de menos, como diz Aristóteles, e a mim mesmo – graças ao que a justiça, apesar de sua medida, ou por causa dela, permanece para cada qual um horizonte quase inacessível – como se eu fosse qualquer um. O que eu sou, no entanto, é a verdade da justiça, que os outros, justos ou injustos, se encarregarão de me lembrar… “A justiça”, lemos em Spinoza, “é uma disposição constante da alma a atribuir a cada um o que lhe cabe de acordo com o direito civil.” Em outras palavras, é chamado justo “quem tem uma vontade constante de atribuir a cada um o que lhe cabe”. É a definição tradicional, tal como já a encontrávamos em Simônides ou em santo Agostinho. Mas o que é meu? Nada, segundo a natureza, isso porque a justiça supõe uma vida social política e juridicamente organizada: “Não há nada na natureza que possa ser dito coisa de um ou de outro, mas tudo pertence a todos; em conseqüência, no estado natural, não se pode conceber vontade de atribuir a cada um o que lhe cabe, ou de tirar de cada um o que é seu; ou seja, no estado natural não há nada que possa ser dito justo ou injusto.” Para Spinoza, como para Hobbes, o justo e o injusto são “noções extrínsecas” que só descrevem “qualidades relativas ao homem em sociedade, não ao homem solitário”. Isso não impede, decerto, que a justiça também seja uma virtude, mas essa virtude só é possível quando direito e propriedade estão estabelecidos. E como, senão pelo consentimento, livre ou forçado, dos indivíduos? A justiça só existe na medida em que os homens a querem, de comum acordo, e a fazem. Portanto, não há justiça no estado natural, nem justiça natural. Toda justiça é humana, toda justiça é histórica: não há justiça (no sentido jurídico do termo) sem leis, nem (no sentido moral) sem cultura – não há justiça sem sociedade. Mas pode-se conceber, inversamente, uma sociedade sem justiça? Hobbes ou Spinoza responderiam que não, e eu os seguiria de bom grado. Que sociedade pode haver sem leis e sem um mínimo de igualdade ou de proporção? Até os bandidos, como foi tantas vezes notado, só podem formar uma comunidade, embora de malfeitores, desde que respeitem entre si certa justiça, pelo menos, cabe dizer, distributiva. Como poderia ser diferente na escala de toda uma sociedade? Encontramos no entanto em Hume uma resposta diferente, que faz pensar. Ela se apóia em cinco hipóteses, de valor desigual, parece-me, mas todas sugestivas e merecedoras de exame. Claro, Hume não contesta em nada a utilidade, e mesmo a necessidade, da justiça para toda sociedade real. Ele dá inclusive a base da sua teoria – utilitarista ante litteram: “A necessidade da justiça para manter a sociedade é o único fundamento dessa virtude”, escreve, e se podemos discutir essa unicidade, como vimos e tornaremos a ver, não é possível contestar essa necessidade. Qual de nossas sociedades poderia sobreviver sem leis, tanto jurídicas quanto morais? É verdade, em se tratando de qualquer sociedade humana efetiva. Mas essas sociedades são muito complexas: como saber se essa necessidade da justiça é de fato, como pensa Hume, seu único fundamento? Tentando, responde Hume, conceber sociedades pelo menos possíveis em que essa necessidade não existisse. Se a justiça subsistir nelas, pelo menos como exigência, isso significará que a necessidade não basta para explicar; se desaparecer, será um argumento fortíssimo para concluir que só a necessidade basta, numa sociedade dada, para explicar seu aparecimento e fundamentar seu valor. É nesse espírito que Hume, como eu anunciava, avança cinco suposições sucessivas, que irão suprimir a necessidade da justiça e, com isso, pretende ele mostrar, sua validade. Se essas hipóteses fossem aceitáveis e a inferência justificada, seria necessário concluir que a utilidade ou a necessidade públicas são, de fato, “a única origem da justiça” e “o único fundamento de seu mérito”. Essas cinco hipóteses, para resumir, são as seguintes: 1ª) uma abundância absoluta, 2ª) um amor universal, 3ª) uma miséria ou uma violência extremas e generalizadas (como na guerra ou no estado natural de Hobbes), 4ª) a confrontação com seres dotados de razão porém fracos demais para se defenderem, enfim 5ª) uma separação total dos indivíduos, acarretando para cada um deles uma solidão radical. Nesses cinco modelos, quer mostrar Hume, a justiça, deixando de ser necessária ou útil, deixaria também de valer. Ora, o que resulta disso? A quinta dessas suposições (solidão radical) é sem dúvida a mais forte. Regendo nossas relações com outrem, na solidão ela não teria objeto, não teria pertinência, não teria conteúdo. Que poderia ela valer e que sentido teria considerar como virtude uma disposição que nunca encontrasse oportunidade de se exercer? Não que seja impossível ser justo ou injusto para consigo mesmo. Mas isso, sem dúvida, só é possível, em referência, ainda que implícita, aos outros. Julgar é sempre mais ou menos comparar, e é nisso que toda justiça, mesmo a justiça reflexiva, é social. Não há justiça sem sociedade, como vimos, e isso dá razão a Hume: não há justiça na solidão absoluta. A rigor, também se pode admitir o alcance da segunda hipótese (amor universal). Se cada indivíduo fosse cheio de amizade, de generosidade e de benevolência para com seus semelhantes, não precisaria mais de leis, nem precisaria respeitar para com eles um dever de igualdade: o amor iria além do simples respeito dos direitos, como se vê nas famílias unidas, e faria as vezes de justiça. Digo “a rigor”, pois seria necessário perguntar-se se esse amor aboliria a justiça, como pensa Hume, ou então se nos tornaria justos, como me inclino a pensar, ao mesmo tempo em que nos levaria além. Recordemos a bela fórmula de Aristóteles: “Amigos, não necessitamos da justiça; justos, ainda necessitamos da amizade.” Isso não significa que sejamos injustos para com nossos amigos, mas que a justiça então – quem pode mais, pode menos – é óbvia, incluída que está, e ultrapassada, nas doces exigências da amizade. Todavia a implicação não é considerável: é verdade que o amor, sobretudo se universal e sem limites, não tem de se preocupar com obrigações que satisfaz de passagem, decerto, mas sem se deter e, até (pois nada o leva a transgredi-las), sem se sentir submetido a elas. Tudo bem, pois, no que concerne ao amor (2ª) e à solidão (5ª). As três outras hipóteses são muito mais problemáticas. A abundância (1ª), em primeiro lugar. Imaginemos que todos os bens possíveis se ofereçam, em quantidade infinita, a quem os desejar; em tal situação, explica Hume, a prudente e zelosa virtude de justiça nunca viria ao espírito de ninguém. Com que fim dividir os bens, se cada um já tem mais do que é suficiente? Por que estabelecer a propriedade, quando é impossível ela ser lesada? Por que declarar esse objeto meu, quando, se alguém viesse tomá-lo, bastaria eu esticar a mão para me apoderar de outro objeto de igual valor? A justiça, nesse caso, sendo totalmente inútil, seria um cerimonial vão e nunca poderia encontrar seu lugar no catálogo das virtudes. No entanto, será tão certo assim? Sem dúvida, já não haveria porque proibir o roubo nem, portanto, garantir a propriedade. Mas será ela, como Hume parece pensar, o único objeto da justiça? Será este o único direito do homem que pode ser ameaçado, o único que deve ser defendido? Numa sociedade de abundância, como a idade de ouro dos poetas ou o comunismo de Marx, seria sempre possível caluniar o próximo ou condenar um inocente (o roubo não teria motivo, talvez, mas e o assassinato?), e isso seria tão injusto quanto em nossas sociedades de penúria ou (como diz Rawls, de acordo aqui com Hume) de “raridade relativa dos recursos”. Se a justiça, como estamos de acordo em pensar, é a virtude que respeita a igualdade dos direitos e que concede a cada um o que lhe é devido, como crer que só possa dizer respeito a propriedades… ou a proprietários? Possuir, será esse meu único direito? Proprietário, será essa minha única dignidade? E estaremos quites com a justiça pela simples razão de nunca termos roubado? Eu faria a mesma observação, ou uma observação do mesmo gênero, a propósito da extrema miséria ou da generalização da violência (3ª). “Suponhamos”, escreve Hume, “que uma sociedade chegue a não poder mais satisfazer todas as necessidades ordinárias, a tal ponto que a frugalidade e a indústria, por maiores que sejam, não possam impedir que a maioria pereça e o conjunto caia numa miséria completa. Admitir-se-á facilmente, creio eu, que em tão premente urgência as leis estritas da justiça sejam suspensas e cedam lugar aos motivos, mais imperiosos, da necessidade e da preservação de si.” No entanto, parece-me que é isso que a experiência dos campos de concentração nazistas ou stalinistas refuta. Tzvetan Todorov, apoiando-se nos testemunhos dos sobreviventes, mostrou que, “mesmo no interior dos campos de concentração, nesse extremo do extremo, a opção entre o bem e o mal permanecia possível” e que a “raridade dos justos” não poderia autorizar que fossem esquecidos – a não ser que se fizesse o jogo de seus carrascos. Nos campos de concentração como alhures, as diferenças individuais eram também diferenças éticas. Alguns roubavam a ração de seus co-detentos, denunciavam os líderes aos guardas, oprimiam os mais fracos, cortejavam os mais fortes… Injustiça. Outros organizavam a resistência e a solidariedade, dividiam os recursos comuns, protegiam os mais fracos, em suma, tentavam restabelecer apesar de tudo, no horror generalizado, como que uma aparência de direito ou de eqüidade… Justiça. Que ela tivesse de mudar de formas, imagina-se, mas sem com isso desaparecer, nem como exigência, nem como valor, nem como possibilidade; Nos campos de concentração também havia justos e canalhas, ou antes era possível (desconfiemos das globalizações extremadas e simplificadoras) ser mais ou menos justo, e alguns o foram, muitas vezes à custa da própria vida, heroicamente. Sacha Peterski, Milena Jasenska, Etty Hillesum, Rudi Massarek, Maxymilien Kolbe, Else Krug, Mala Zimetbaum, Hiasl Neumeier… Devemos fazer como se não tivessem existido? E quantos outros, por serem menos heróicos, foram apesar de tudo mais justos do que poderiam ser, até mesmo mais do que – se se tratasse de sua sobrevivência apenas – teriam interesse de ser? De tanto repetir que, nos campos de concentração, toda moral havia desaparecido, dá-se razão aos que gostariam de fato de fazê-la desaparecer, e esquece-se dos que resistiram – em seu nível, com seus meios – a essa aniquilação. Combate de todos os dias, de todos os instantes, contra os guardas, contra os outros detentos e contra si. Quantos heróis desconhecidos? Quantos justos esquecidos? Quem, por exemplo, sem o testemunho de Robert Antelme, se lembraria de Jacques, o estudante de medicina? Se fôssemos encontrar um SS e lhe mostrássemos Jacques, poderíamos dizer-lhe: “Olhe para ele, vocês fizeram dele este homem apodrecido, amarelado, o que melhor deve parecer o que vocês pensam que ele é por natureza: o lixo, a escória, vocês conseguiram. Pois bem, vamos lhe dizer o seguinte, que deveria fazer você cair duro, se o ‘erro’ pudesse matar: vocês permitiram que ele se tornasse o homem mais consumado, mais seguro de seus poderes, dos recursos de sua consciência e do alcance de seus atos, o mais forte. (…) Com Jacques, vocês nunca ganharam. Queriam que ele roubasse, e ele não roubou. Queriam que ele lambesse as botas dos kapos para comer, e ele não lambeu. Queriam que ele risse para ser bem-visto, quando um meister batia num companheiro, e ele não riu.” Jacques, dizia pouco antes Robert Antelme, é “o que na religião se chama de santo”. E que, em toda parte, se chama de justo. Por que seria diferente na guerra? É evidente que ela subverte as condições de exercício da justiça e torna sua prática infinitamente mais difícil e aleatória: não há guerra justa, se entendemos com isso uma guerra que respeite, como se nada estivesse acontecendo, as leis e os direitos ordinários da humanidade. No entanto, isso não impede que um soldado ou um oficial possa ser, numa situação dada, mais justo do que outro, ou menos injusto, o que basta para provar que nem a exigência da justiça nem seu valor são pura e simplesmente abolidos pela guerra. Aliás, Hume o reconhece, em outra passagem, dando a entender que isso ocorre porque as guerras deixam subsistir, mesmo entre inimigos, um interesse comum ou uma utilidade compartilhada. Mas isso não poderia esgotar a exigência de justiça, pois esta pode ir contra esses interesses ou essa utilidade! Nada nos impede de considerar, por exemplo, e apenas a título de hipótese, que a tortura ou a execução de prisioneiros possam ser, numa guerra, mutuamente vantajosas (cada exército poderia tirar proveito delas), mas isso bastaria para fazer com que fosse justo? É incontestável que a utilidade comum reforça a exigência de justiça e é, com freqüência, a motivação mais forte que nos leva a respeitá-la. Mas se ela constituísse toda a justiça, já não haveria nem justiça nem injustiça. Só haveria o útil e o prejudicial, o interesse e o cálculo; a inteligência bastaria à justiça, ou antes faria as vezes dela. Mas não é assim, e é o que os justos, mesmo diante do pior, nos lembram. Quanto à quarta hipótese de Hume (seres dotados de razão porém fracos demais para se defenderem), ela é de arrepiar, e nos faz mal ver um gênio tão grande e tão cativante escrever o que ele escreve: Se houvesse uma espécie de criaturas, vivendo entre os homens, dotadas de razão, mas dotadas de uma força tão inferior, tanto física como mental, que elas fossem incapazes de qualquer resistência e nunca pudessem, mesmo diante da mais flagrante provocação, nos fazer sentir os efeitos de seu ressentimento, acho que seríamos necessariamente obrigados, pelas leis da humanidade, a tratar essas criaturas com doçura; mas, falando propriamente, não estaríamos obrigados por nenhum dever de justiça para com elas, e elas não poderiam ter nem direito nem propriedade a opor a esses amos arbitrários. Nossas relações com elas não poderiam ser chamadas “sociedade”, pois esse nome supõe certo grau de igualdade, mas sim “poder absoluto” de um lado e “obediência servil” do outro. Elas devem renunciar de imediato a tudo o que cobiçamos; nossa permissão é o único contrato pelo qual elas têm suas posses; nossa compaixão e nossa gentileza são os únicos freios que lhes permitem alterar nosso querer arbitrário. E, como nunca resulta nenhum inconveniente do exercício de um poder tão firmemente estabelecido pela natureza, as exigências da justiça e da propriedade, sendo totalmente inúteis, nunca teriam seu lugar numa associação tão desigual. Quis citar esse parágrafo por inteiro para não correr o risco de traí-lo. Vê-se que as qualidades pessoais de Hume, em especial sua humanidade, não estão em causa. Mas é quanto ao fundo, e filosoficamente, que esse pensamento parece inaceitável. Que a doçura e a compaixão sejam devidas aos fracos, estou de acordo, é evidente; aliás, elas figuram em seu devido lugar neste tratado. Mas como aceitar que elas façam as vezes da justiça ou a ministrem? Não há justiça, escreve Hume, nem mesmo sociedade, sem “um certo grau de igualdade”. Muito bem, contanto que se acrescente que a igualdade em questão não é uma igualdade de fato ou de poder, mas uma igualdade de direitos! Ora, para se terem direitos, bastam a consciência e a razão, mesmo virtuais e mesmo sem nenhuma força para se defender ou atacar. Se não fosse assim, as crianças não teriam direitos, nem os doentes, e afinal (como nenhum indivíduo é forte o suficiente para se defender de maneira eficaz) ninguém teria. Imaginemos por um instante esses indivíduos racionais e sem defesas que Hume evoca. Teria eu, por exemplo, o direito de explorá-los ou roubá-los a meu bel-prazer (já que doçura e compaixão são de outra ordem)? “É essa, manifestamente, a situação dos homens em relação aos animais”, escreve Hume. De maneira nenhuma, pois os animais não são, no sentido usual do termo, “dotados de razão”! Hume bem o sente, pois toma dois outros exemplos, e que exemplos! “A grande superioridade dos europeus civilizados sobre os indígenas bárbaros”, escreve, “convidou-nos a nos imaginar numa relação assim com eles e nos fez rejeitar qualquer obrigação de justiça, e mesmo de humanidade, na maneira como os tratamos.” Pode ser, mas era justo? A fraqueza deles diante dos europeus, no entanto, era incontestável, e a justiça para com eles deixava, como os acontecimentos mostraram, de ser socialmente necessária. E isso significa que nenhuma justiça lhes fosse devida? Pode-se admitir que doçura e compaixão esgotavam tudo o que lhes devíamos ou, antes (pois, por sua fraqueza, supõe-se que não tinham nenhum direito), tudo o que não lhes devíamos? Não é possível aceitar tal argumento, parece-me, sem renunciar à própria idéia de justiça. É o que Montaigne, tão próximo de Hume em tantos outros pontos, soube perceber. A fraqueza dos indígenas da América, longe de nos isentar de justiça, devia recomendá-los à nossa justiça (e não apenas à nossa compaixão), e somos culpados, muito intensamente culpados, por ter ultrapassado nossos direitos ao violar os deles. A justiça, “que distribui a cada um o que lhe pertence”, como diz Montaigne, não poderia autorizar massacres e saques. E, embora ela tenha sido evidentemente “engendrada para a sociedade e a comunidade dos homens”, nada autoriza a pensar que se baseie apenas em sua própria e exclusiva utilidade. É uma hipótese que não encontramos em Montaigne, mas tudo leva a crer que ele a teria aceito: imaginemos uma nova América, que descobriríamos em outro planeta, habitada por seres racionais, mas doces e sem defesas; estaríamos prontos a bancar de novo os conquistadores, a massacrar de novo, a saquear de novo? Poderia ser, se o interesse e a utilidade nos impelissem a isso com bastante força. Mas que isso possa ser justo, não. O segundo exemplo que Hume toma, aparentemente mais jocoso, não é menos discutível: “Em muitas nações”, continua ele, “o sexo feminino está reduzido a uma escravidão análoga e é colocado, diante de seus senhores e amos, na incapacidade de possuir o que quer que seja. No entanto, embora os homens, quando unidos, tenham em todos os países força física suficiente para impor essa severa tirania, a persuasão, a habilidade e os encantos de suas belas companheiras são tais, que as mulheres são geralmente capazes de quebrar essa união e dividir com o outro sexo todos os direitos e privilégios da vida em sociedade.” Não contesto a realidade dessa escravidão, nem dessa habilidade, nem desses encantos. Mas essa escravidão era justa? E seria justa, num país em que a lei não a proibisse, ou até mesmo a prescrevesse, no caso de uma mulher totalmente desprovida de persuasão, de habilidade ou de encantos? Não podemos sequer pensá-lo, nem que doçura e compaixão fossem, em relação a uma mulher feia e inábil, os únicos limites que devêssemos – se a legislação não impusesse limites positivos – respeitar! Encontramos em Lucrécio (ele também, entretanto, como Epicuro, antes utilitarista em matéria de justiça) uma idéia rigorosamente inversa: a fraqueza das mulheres e das crianças, nos tempos pré-históricos, longe de excluí-las das justiça, é o que a torna necessária (mas moralmente necessária) e desejável: Quando souberam servir-se das cabanas, das peles de animais e do fogo, quando a mulher, pelos vínculos do casamento, tornou-se propriedade de um só esposo e quando viram crescer a descendência nascida de seu sangue, então o gênero humano começou a perder pouco a pouco sua rudeza. (…) Vênus tirou parte de seu rigor; e as crianças pelas suas carícias não tiveram dificuldade de dobrar o temperamento feroz de seus pais. Então também a amizade começou a atar seus vínculos entre vizinhos, desejosos de poupar qualquer violência mútua; recomendaram-se, e a seus filhos e mulheres, dando a entender confusamente com a voz e o gesto que era justo [aecum] que todos tivessem piedade dos fracos. A doçura e a compaixão não fazem as vezes da justiça, nem assinalam seu fim; elas são antes sua origem, e é por isso que a justiça, que vale primeiro em relação aos mais fracos, em caso algum os excluiria de seu campo, nem nos dispensaria do dever de respeitá-la, diante deles. É evidente que a justiça é socialmente útil e, até, socialmente indispensável, é evidente; mas essa utilidade ou essa necessidade sociais não poderiam limitar totalmente seu alcance. Uma justiça que só valesse para os fortes seria injusta, e isso mostra o essencial da justiça como virtude: ela é o respeito à igualdade de direitos, não de forças, e aos indivíduos, não às potências. Pascal, mais que Hume, é freqüentemente cínico. Mas não transige quanto ao essencial: “A justiça sem a força é impotente; a força sem a justiça é tirânica.” Não são os justos que prevalecem; são os mais fortes, sempre. Mas isso, que proíbe sonhar, não proíbe combater. Pela justiça? Por que não, se nós a amamos? A impotência é fatal; a tirania é odiosa. Portanto, é necessário “pôr a justiça e a força juntas”; é para isso que a política serve e é isso que a torna necessária. O desejável, dizia eu, é evidentemente que leis e justiça caminhem no mesmo sentido. Pesada responsabilidade, para o soberano e, em especial, em nossas democracias, para o poder legislativo! No entanto, não poderíamos descarregar em nossos parlamentares: todo poder deve ser tomado, ou defendido, e ninguém obedece inocentemente. Também seria um equívoco sonhar uma legislação absolutamente justa, que bastaria aplicar. Aristóteles já mostrara que a justiça não poderia estar toda contida nas disposições necessariamente gerais de uma legislação. É por isso que, em seu ápice, ela é eqüidade: porque a igualdade que ela visa ou instaura é uma igualdade de direito, apesar das desigualdades de fato e até, muitas vezes, apesar das que nasceriam de uma aplicação demasiado mecânica ou demasiado intransigente da lei. “O eqüitativo”, explica Aristóteles, “embora sendo justo, não é o justo de acordo com a lei, mas um corretivo da justiça legal”, o qual permite adaptar a generalidade da lei à complexidade cambiante das circunstâncias e à irredutível singularidade das situações concretas. Embora o homem eqüitativo seja justo, e até eminentemente justo, mas no sentido em que a justiça, muito mais do que simples conformidade a uma lei, é um valor e uma exigência. “O eqüitativo”, dizia também Aristóteles, “é o justo, tomado independentemente da lei escrita.” Ao homem eqüitativo, a legalidade importa menos que a igualdade, ou pelo menos ele sabe corrigir os rigores e as abstrações daquela mediante as exigências muito mais flexíveis e complexas (pois se trata, repitamos, da igualdade entre indivíduos que são, todos, diferentes) desta. Isso pode levá-lo muito longe, e até em detrimento de seus interesses: “Quem tende a escolher e realizar as ações eqüitativas e não se atém rigorosamente a seus direitos no sentido do pior, mas tende a tomar menos do que lhe é devido, embora tenha a lei a seu lado, é um homem eqüitativo, e essa disposição é a eqüidade, uma forma especial de justiça e não uma disposição inteiramente distinta.” Digamos que é justiça aplicada, justiça viva, justiça concreta – justiça verdadeira. Ela não dispensa a misericórdia (“a eqüidade”, dizia Aristóteles, “é perdoar o gênero humano”), não no sentido de que se renuncie sempre a punir, mas de que, para ser eqüitativo, o juízo precisa ter superado o ódio e a cólera. A eqüidade também não dispensa a inteligência, a prudência, a coragem, a fidelidade, a generosidade, a tolerância… É nisso que coincide com a justiça, não mais como virtude particular, tal como a consideramos aqui, mas como virtude geral e completa, aquela que contém ou supõe todas as outras, aquela de que Aristóteles dizia tão belamente que a consideramos “a mais perfeita das virtudes e (que) nem a estrela da noite, nem a estrela da manhã são tão admiráveis”. O que é um justo? É alguém que põe sua força a serviço do direito, e dos direitos, e que, decretando nele a igualdade de todo homem com todo outro, apesar das desigualdades de fato ou de talentos, que são inúmeras, instaura uma ordem que não existe, mas sem a qual nenhuma ordem jamais poderia nos satisfazer. O mundo resiste, e o homem. Portanto, é preciso resistir a eles – e resistir antes de tudo à injustiça que cada um traz em si mesmo, que é si mesmo. É por isso que o combate pela justiça não terá fim. Esse Reino, pelos menos, nos é proibido, ou antes já estamos nele só quando nos esforçamos para alcançá-lo. Felizes os famintos de justiça, que nunca serão saciados! /André Comte-Sponville