sábado, 14 de março de 2009

O HUMOR !

Que ele seja uma virtude poderá surpreender. Mas é que toda a seriedade é condenável, referindo-se a nós mesmos. O humor nos preserva dela e, além do prazer que sentimos com ele, é estimado por isso. Se “a seriedade designa a situação intermediária de um homem eqüidistante entre desespero e futilidade”, como diz lindamente Jankélévitch, devemos observar que o humor, ao contrário, opta resolutamente pelos dois extremos. “Polidez do desespero”, dizia Vian, e a futilidade pode fazer parte dela. É impolido dar-se ares de importância. É ridículo levar-se a sério. Não ter humor é não ter humildade, é não ter lucidez, é não ter leveza, é ser demasiado cheio de si, é ser demasiado severo ou demasiado agressivo, é quase sempre carecer, com isso, de generosidade, de doçura, de misericórdia… O excesso de seriedade, mesmo na virtude, tem algo de suspeito e de inquietante: deve haver alguma ilusão ou algum fanatismo nisso… É virtude que se acredita e que, por isso, carece de virtude. Não exageremos porém a importância do humor. Um canalha pode ter humor; um herói pode não ter. Mas isso é verdade, como vimos, para a maioria das virtudes, e não prova nada contra o humor, a não ser, o que é claríssimo, que ele não prova nada. Mas se quisesse provar continuaria sendo humor? Virtude anexa, se quisermos, ou compósita, virtude leve, virtude inessencial, virtude engraçada, em certo sentido, pois caçoa da moral, pois se contenta com ser engraçada, mas grande qualidade, mas preciosa qualidade, que por certo pode faltar a um homem de bem, mas não sem que isso atinja em algo a estima, inclusive moral, que temos por ele. Um santo sem humor é um triste santo. E um sábio sem humor seria mesmo um sábio? O espírito é o que escarnece de tudo, dizia Alain, e é por isso que o humor faz parte, de pleno direito, do espírito. Isso não impede a seriedade, no que diz respeito a outrem, nossas obrigações para com ele, nossos compromissos, nossas responsabilidades, até mesmo no que diz respeito à condução de nossa própria existência. Mas impede de nos iludirmos ou de ficarmos demasiado satisfeitos. Vaidade das vaidades: só faltou ao Eclesiastes um pouco de humor para dizer o essencial. Um pouco de humor, um pouco de amor: um pouco de alegria. Mesmo sem razão, mesmo contra a razão. Entre desespero e futilidade, às vezes a virtude fica menos num meio-termo do que na capacidade de abraçar, num mesmo olhar ou num mesmo sorriso, esses dois extremos entre os quais vivemos, entre os quais evoluímos, e que se encontram no humor. O que não é desesperador para um olhar lúcido? E o que não é fútil, para um olhar desesperado? Isso não nos impede de rir do que vemos, e é sem dúvida o que de melhor podemos fazer. Que valeria o amor, sem a alegria? O que valeria a alegria, sem o humor? Tudo o que não é trágico é irrisório. Eis o que a lucidez ensina. E o humor acrescenta, num sorriso, que não é trágico… Verdade do humor. A situação é desesperadora, mas não é grave. A tradição opõe o riso de Demócrito às lágrimas de Heráclito: “Demócrito e Heráclito”, lembra Montaigne, “foram dois filósofos, o primeiro dos quais, achando vã e ridícula a condição humana, só saía em público com um semblante zombeteiro e risonho; Heráclito, sentindo piedade e compaixão por essa mesma condição nossa, trazia o semblante continuamente entristecido, e os olhos carregados de lágrimas…” E por certo não faltam motivos para rir ou chorar. Mas qual é a melhor atitude? O real, que não ri nem chora, não dá a resposta. Isso não quer dizer que tenhamos escolha – em todo caso não quer dizer que essa escolha dependa de nós. Eu diria antes que ela nos constitui, nos permeia, riso ou lágrimas, riso e lágrimas, que nós oscilamos entre esses dois pólos, uns pendendo mais para isso, outros mais para aquilo… Melancolia contra alegria? Não é tão simples assim. Montaigne, que tinha seus momentos de tristeza, de abatimento, de desgosto, ainda assim prefere Demócrito: “Prefiro o primeiro estado de espírito”, explica, “não porque é mais agradável rir do que chorar, mas por ser mais desdenhoso e por nos condenar mais que o outro; e parece-me que nunca podemos ser tão desprezados quanto merecemos.” Chorar por isso? Seria levar-se demasiado a sério! Mais vale rir: “Não acredito que haja em nós tanta infelicidade quanta vaidade, nem tanta malícia quanta tolice. […] Nossa própria e peculiar condição é tão ridícula quanto risível.” De que adianta se lamentar por tão pouco (por esse pouco que somos)? De que adianta se odiar (“o que odiamos levamos a sério”), quando basta rir? Mas há rir e rir, e cumpre distinguir aqui o humor da ironia. A ironia não é uma virtude, é uma arma – voltada quase sempre contra outrem. É o riso mau, sarcástico, destruidor, o riso da zombaria, o riso que fere, que pode matar, é o riso a que Spinoza renuncia (“non ridere, non lugere, neque detestari, sed intelligere”), é o riso do ódio, é o riso do combate. Útil? Como não, quando necessário! Que arma não o é? Mas nenhuma arma é a paz, nenhuma ironia é o humor. A linguagem pode enganar. Nossos humoristas, como se diz, ou como eles se dizem, muitas vezes não passam de ironistas, de satiristas – e, por certo, são necessários. Mas os melhores misturam os dois gêneros: é o caso de Bedos, mais ironista quando fala da direita, mais humorista quando fala da esquerda, puro humorista quando fala de si mesmo e de nós todos. Que tristeza, se só pudéssemos rir contra! E que seriedade, se só soubéssemos rir dos outros! A ironia é isso mesmo: é um riso que se leva a sério, é um riso que zomba, mas não de si, é um riso, e a expressão é bem reveladora, que goza da cara dos outros. Se se volta contra o eu (é o que se chama autoderrisão), permanece exterior e nefasta. A ironia despreza, acusa, condena… Leva-se a sério e só desconfia da seriedade do outro – ainda que, como bem viu Kierkegaard, venha a “falar de si como de um terceiro”. Isso quebrou, ou antes refreou, mais de um grande espírito. Humildade? Nada disso. Como é preciso, ao contrário, levar-se a sério para zombar dos outros! Como é preciso ser orgulhoso, inclusive, para se desprezar! A ironia é essa seriedade, a cujos olhos tudo é ridículo. A ironia é essa pequenez, a cujos olhos tudo é pequeno. Rilke dera o remédio: “Atinjam as profundezas: a ironia não desce até lá.” Isso não seria verdadeiro para o humor, e é essa uma primeira diferença. A segunda, a mais significativa, prende-se à reflexividade do humor, à sua interioridade, ao que gostaríamos de chamar sua imanência. A ironia ri do outro (ou do eu, na autoderrisão, como de um outro); o humor ri de si, ou do outro como de si, e sempre se inclui, em todo caso, no disparate que instaura ou desvenda. Não que o humorista não leve nada a sério (humor não é frivolidade). Simplesmente, ele recusa levar a sério a si mesmo, ou seu riso, ou sua angústia. A ironia procura fazer-se valer, como diz Kierkegaard; o humor, abolir-se. Ele não poderia ser permanente nem se erigir em sistema, pois não passaria então de uma defesa como outra qualquer e já não seria humor. Nossa época o perverte, de tanto o celebrar. Há coisa mais triste do que cultivá-lo para ele mesmo? Do que fazer dele um meio de sedução? Um monumento à glória do narcisismo? Fazer dele uma profissão ainda passa, afinal é preciso ganhar a vida. Mas uma religião? Mas uma pretensão? Seria trair o humor, seria não ter humor. Quando é fiel a si, o humor conduz antes à humildade. Não há orgulho sem espírito de seriedade, nem espírito de seriedade, no fundo, sem orgulho. O humor atinge este quebrando aquele. É nisso que é essencial ao humor ser reflexivo ou, pelo menos, englobar-se no riso que ele acarreta ou no sorriso, mesmo amargo, que ele suscita. É menos uma questão de conteúdo do que de estado de espírito. A mesma fórmula, ou a mesma brincadeira, pode mudar de natureza, segundo a disposição de quem a enuncia: o que será ironia em um, que se exclui dela, poderá ser humor em outro, que nela se inclui. Aristófanes faz ironia, em As nuvens, quando zomba de Sócrates. Mas Sócrates (grande ironista, aliás) dá prova de humor quando, assistindo à representação, ri gostosamente com os outros. Os dois registros podem, é claro, misturar-se, a ponto de serem indissociáveis, indiscerníveis, a não ser, se tanto, pelo tom ou pelo contexto. Assim, quando Groucho Marx declara magnificamente: “Tive uma noitada excelente, mas não foi esta.” Se ele diz isso à dona da casa, depois de uma noitada malograda, é ironia. Se diz ao público, no fim de um de seus espetáculos, será antes humor. Mas, no primeiro caso, pode se somar humor, se Groucho Marx assumir sua parte de responsabilidade no fracasso da noite, assim como ironia no segundo, caso o público, isso acontece, tiver denotado uma falta excessiva de talento… Podemos gracejar sobre tudo: sobre o fracasso, sobre a guerra, sobre a morte, sobre o amor, sobre a doença, sobre a tortura… Mas é preciso que esse riso acrescente um pouco de alegria, um pouco de doçura ou de leveza à miséria do mundo, e não mais ódio, sofrimento ou desprezo. Podemos rir de tudo, mas não de qualquer maneira. Uma piada de judeu nunca será humorística na boca de um anti-semita. O riso não é tudo e não desculpa nada. De resto, tratando-se de males que não podemos impedir ou combater, seria evidentemente condenável contentar-se com gracejar. O humor não substitui a ação, e a insensibilidade, no concerne ao sofrimento dos outros, é uma falta. Mas também seria condenável, na ação ou na inação, levar demasiado a sério seus próprios bons sentimentos, suas próprias angústias, suas próprias revoltas, suas próprias virtudes. Lucidez bem ordenada começa por si mesmo. Daí o humor, que pode fazer rir de tudo contanto que ria primeiro de si. “A única coisa que lamento”, diz Woody Allen, “é não ser outra pessoa.” Mas também com isso ele o aceita. O humor é uma conduta de luto (trata-se de aceitar aquilo que nos faz sofrer), o que o distingue de novo da ironia, que seria antes assassina. A ironia fere; o humor cura. A ironia pode matar; o humor ajuda a viver. A ironia quer dominar; o humor liberta. A ironia é implacável; o humor é misericordioso. A ironia é humilhante; o humor é humilde. Mas o humor não está apenas a serviço da humildade. Também vale por si mesmo: ele transmuta a tristeza em alegria (logo o ódio em amor ou em misericórdia, diria Spinoza), a desilusão em comicidade, o desespero em alegria… Ele desarma a seriedade, mas também, por isso mesmo, o ódio, a cólera, o ressentimento, o fanatismo, o espírito sistemático, a mortificação, até mesmo a ironia. Rir de si primeiro, mas sem ódio. Ou de tudo, mas apenas enquanto se faz parte desse tudo e se o aceita. A ironia diz não (muitas vezes fingindo dizer sim); o humor diz sim, sim apesar de tudo, sim apesar dos pesares, inclusive a tudo o que o humorista, enquanto indivíduo, é incapaz de aceitar. Duplicidade? Quase sempre, na ironia (não há ironia sem simulação, sem uma parte de má-fé); quase nunca, no humor (um humor de má-fé ainda seria humor?). Muito mais ambivalência, muito mais contradição, muito mais dilaceramento, porém assumidos, porém aceitos, porém superados em alguma coisa. É Pierre Desproges anunciando seu câncer: “Mais canceroso que eu, você morre!” É Woody Allen encenando suas angústias, seus fracassos, seus sintomas… É Pierre Dac confrontado à condição humana: “À eterna tríplice questão que sempre ficou sem resposta: ‘Quem somos? De onde viemos? Para onde vamos?’, respondo: ‘No que me diz respeito, eu sou eu, venho da minha casa e volto para ela.’” Observei em outra parte que não havia filosofia cômica: é um limite para o riso, sem dúvida (ele não poderia fazer as vezes de pensamento); mas também o é para a filosofia: ela não substitui o riso, nem a alegria, nem mesmo a sabedoria. Tristeza dos sistemas, seriedade esmagadora do conceito, quando ele se dá demasiada importância! Um pouco de humor preserva disso, como vemos em Montaigne, como vemos em Hume, como não vemos nem em Kant nem em Hegel. Já citei a famosa fórmula de Spinoza: “Não ridicularizar, não deplorar, não amaldiçoar, mas compreender.” Sim. Mas e se não houver nada a compreender? Resta rir – não contra (ironia), mas de, mas com, mas no (humor). Embarcamos e não há barco: melhor rir do que chorar. É a sabedoria de Shakespeare, a de Montaigne, e é a mesma, e é a verdadeira. “Triunfo do narcisismo”, escreve estranhamente Freud. Mas para logo em seguida constatar que é a custa do próprio ego, reposto em seu devido lugar, de certa forma, pelo superego. Triunfo do narcisismo (já que o ego “se afirma vitoriosamente” e acaba desfrutando exatamente daquilo que o ofende e que ele supera), mas sobre o narcisismo! “Triunfo do princípio de prazer”, escreve ainda Freud. Mas que só é possível desde que se aceite, nem que seja para rir, a realidade tal como é, tal como permanece. “O humor parece dizer: ‘Olhe! Eis o mundo que lhe parece tão perigoso! Uma brincadeira de crianças! O melhor, portanto, é brincar!’” O “desmentido à realidade”, como diz Freud, só é humorístico se desmentir a si mesmo (senão já não seria humor, e sim loucura, já não seria desmentido, e sim demência), se, portanto, reconhecer essa realidade de que graceja, que supera ou que leva na brincadeira. É como aquele condenado à morte que levam à forca numa segunda-feira e que exclama: “A semana está começando bem!” Há coragem no humor, grandeza, generosidade. Com ele o eu é como que libertado de si mesmo. “O humor tem não apenas algo de libertador”, observa Freud, “mas também algo de sublime e elevado”, por isso ele difere de outras formas de comicidade e se aproxima, de fato, da virtude. Isso, mais uma vez, distingue intensamente o humor da ironia, que antes rebaixa, que nunca é sublime, que nunca é generosa. “A ironia é uma manifestação da avareza”, escreve Bobin, “uma crispação da inteligência, que prefere cerrar os dentes a soltar uma só palavra de elogio. O humor, ao contrário, é uma manifestação de generosidade: sorrir daquilo que amamos é amá-lo duas vezes mais.” Duas vezes mais? Não sei. Digamos que é amar melhor, com mais leveza, com mais espírito, com mais liberdade. A ironia, ao contrário, sabe apenas odiar, criticar, desprezar. Dominique Noguez força um pouco o traço, mas aponta a direção certa quando resume a oposição entre humor e ironia nestas poucas linhas, sobretudo na fórmula que as encerra: “O humor e a ironia repousam identicamente numa não-coincidência entre a linguagem e a realidade, mas aqui sentida afetuosamente como uma saudação fraterna à coisa ou à pessoa designada, e ali, ao contrário, como a manifestação de uma oposição escandalizada, depreciativa ou carregada de ódio. Humor é amor; ironia é desprezo.” Em todo caso, não há humor sem um mínimo de simpatia; foi o que Kierkegaard viu: “Justamente por sempre conter uma dor oculta, o humor também comporta uma simpatia de que a ironia é desprovida…” Simpatia na dor, simpatia no desamparo, simpatia na fragilidade, na angústia, na vaidade, na insignificância universal de tudo… O humor tem a ver com o absurdo, com o nonsense, como dizem os anglófonos, com o desespero. Não, claro, que uma afirmação absurda seja sempre engraçada, nem mesmo (se entendermos por absurdo algo que não significa nada) que possa ser. Só podemos rir, ao contrário, do sentido. Mas nem todo sentido, inversamente, é engraçado, e a maioria evidentemente não é. O riso não nasce nem do sentido nem do disparate: ele nasce da passagem de um a outro. Há humor quando o sentido vacila, quando se mostra em via de se abolir, no gesto evanescente (mas como que suspenso no ar, como que captado no vôo pelo riso) de sua apresentação-desaparecimento. Por exemplo, quando Groucho Marx, auscultando um doente, declara: “Ou meu relógio está parado, ou este homem morreu.” Isso significa alguma coisa, é claro, inclusive só é engraçado porque tem sentido. Mas o sentido que isso tem não é nem possível (a não ser abstratamente), nem plausível: o sentido se abole no mesmo instante em que se apresenta, ou antes, só se apresenta (pois se fosse inteiramente abolido não riríamos) em via de se abolir. O humor é um tremor de sentido, uma vacilação de sentido, às vezes uma explosão de sentido, em suma sempre um movimento, um processo, mas concentrado, condensado, que pode aliás permanecer mais ou menos próximo de sua origem (a seriedade do sentido) ou, ao contrário, aproximar-se mais de seu desaguadouro natural (o absurdo do disparate) e acentuar com isso, como todos podemos observar, esta ou aquela de suas infinitas nuances ou modulações. Mas sempre, parece-me, o humor estará entre os dois, nesse brusco movimento entre sentido e disparate (interceptado, como que congelado no instante). Sentido demais ainda não é humor (será muitas vezes ironia); muito pouco sentido já não o é (não passa de absurdo). Encontramos novamente aqui um meio-termo quase aristotélico: o humor não é nem a seriedade (para a qual tudo faz sentido), nem a frivolidade (para a qual nada tem sentido). Mas é um meio-termo instável, ou equívoco, ou contraditório, que desvenda o que há de frívolo em toda seriedade, e de sério em toda frivolidade. O homem de humor, diria Aristóteles, ri como se deve (nem de mais nem de menos), quando se deve e do que se deve… Mas quem decide é só o humor, que pode rir de tudo, inclusive de Aristóteles, inclusive do meio-termo, inclusive do humor… Riremos tanto melhor, ou o humor será tanto mais profundo, quando o sentido alcançar zonas mais importantes de nossa vida, ou acarretar com ele, ou fizer vacilar, trechos mais vastos de nossas significações, de nossas crenças, de nossos valores, de nossas ilusões, digamos, de nossa seriedade. Por vezes é o pensamento que parece implodir, por exemplo quando Lichtenberg evoca sua famosa “faca sem lâmina à qual falta o cabo”. Outras vezes, é a vaidade desta ou daquela ambição contemporânea, por exemplo a da velocidade, num campo particular, por exemplo o dos métodos ditos de leitura rápida: “Li toda Guerra e paz em vinte minutos”, conta Woody Allen; “fala da Rússia.” Outras vezes ainda, é o próprio sentido de nossas condutas ou reações que entra em jogo, que é como que fragilizada ou questionada, confundindo nossos valores, nossas referências, nossas pretensões… Woody Allen de novo: “Sempre trago uma espada comigo para me defender. Em caso de ataque, aperto o seu punho e ela se transforma em bengala branca. Então vêm me socorrer.” Notaremos que, neste último exemplo, há menos passagem do sentido ao disparate do que de um sentido (a máscula segurança da espada: eis um homem pronto para se bater) a outro sentido (a artimanha um tanto covarde da bengala branca). Mas essa passagem de um sentido a outro, e do mais estimável ao mais ridículo, fragiliza um e outro, dando razão com isso, pelo menos virtualmente, ao disparate. Outras vezes ainda (os exemplos que seguem são todos tirados de Woody Allen) é a angústia que se exprime, mas de maneira absurda, e que é como que exorcizada ou posta à distância: “Embora eu não tenha medo da morte, prefiro estar longe quando ela se produzir.” Ou nossos sentimentos é que são relativizados, ou que se relativizam uns aos outros: “É melhor amar ou ser amado? Nem um nem outro, se nossa taxa de colesterol exceder 5,35.” Outras vezes enfim (enfim, porque vou parar, mas poderia continuar, é claro, indefinidamente: sempre há um sentido a questionar, sempre uma seriedade a afastar), outras vezes, dizia para concluir, são nossas esperanças que desvendam o que eles têm de problemático (“a eternidade é longa, principalmente quando vai chegando ao fim”), de sórdido (“Se pelo menos Deus quisesse me dar um indício de sua existência… Se me depositasse uma boa grana num banco suíço, por exemplo!”) ou de improvável (“Não apenas Deus não existe, mas tentem encontrar um encanador no fim de semana!”)… Segui aqui Woody Allen – a todo senhor toda honra. Freud, que não teve a sorte de conhecê-lo, o teria apreciado, creio eu – Freud que gostava de evocar este anúncio de uma agência funerária americana: “Por que viver, se você pode ser enterrado por dez dólares?” Ele acrescentava o seguinte comentário: “Quando nos interrogamos sobre o sentido e o valor da vida, estamos doentes, pois nem um nem outro existem objetivamente…” É o que o humor manifesta e com o que se diverte, em vez de chorar. Isso torna a coincidir com Kierkegaard: “Cansado do tempo e de sua sucessão sem fim, o humorista dele se afasta de um pulo e encontra um alívio humorístico em constatar o absurdo.” Mas, para Kierkegaard, isso era menos a verdade do humor do que sua “falsificação”, sua “retratação” ou “revogação”, pelo que o humor trai sua verdadeira vocação, que é conduzir do ético ao religioso, de ser assim “o último estágio da existência interior antes da fé”, de ser mesmo, como dizia Kierkegaard, o incognito da religiosidade na ética, assim como a ironia era o incognito da ética na estética! Não acredito nem um pouco nisso, é claro. Se é verdade que o humor questiona a seriedade da ética, relativiza essa seriedade, desconfia dela, diverte-se com sua vaidade, suas pretensões, etc., de outro também questiona a seriedade do esteta, quando há seriedade (no esnobe, no mulherengo…), ou a seriedade mais freqüente, mais essencial, do homem religioso. Rir da ética em nome de um sentido superior (por exemplo, em nome da fé), não seria humor, seria ironia. O humor rirá antes da ética (ou da estética, ou da religião…) em nome de um sentido inferior, logo (tendencialmente) em nome do disparate ou, simplesmente, da verdade. Por exemplo, esta, que é de Pierre Desproges: “O Senhor disse: ‘Amarás o próximo como a ti mesmo.’ Pessoalmente, prefiro a mim mesmo, mas não introduzirei minhas opiniões pessoais nesse debate.” Ou esta, que é de Woody Allen: “Sempre obcecado pela idéia da morte, medito constantemente. Não cesso de me perguntar se existe uma vida ulterior, e, se houver uma, será que nela poderão me trocar uma nota de vinte dólares?” Somente a verdade é engraçada, em todo caso humorística, só ela pode sê-lo, e é por isso que o disparate tantas vezes nos diverte: porque nada é verdadeiro no sentido, a não ser pela seriedade que lhe damos e que o humor não suprime (pois não se pode gracejar sempre, pois não se deve, pois o humor supõe, para rir do sentido, que o sentido seja de certa forma mantido), mas relativiza, alivia, afasta, fragiliza de forma feliz, em relação à qual, enfim, ele nos liberta (pois se pode gracejar de tudo) sem a abolir (já que o humor deixa o real imutado e já que nossos desejos, nossas crenças, nossas ilusões fazem parte dele). O humor é uma desilusão alegre. É nisso que é duplamente virtuoso, ou pode sê-lo: como desilusão, tem a ver com a lucidez (portanto da boa-fé); como alegria, tem a ver com o amor, e com tudo. O espírito, repitamos com Alain, zomba de tudo. Quando zomba do que detesta ou despreza, é ironia. Quando zomba do que ama ou estima, é humor. O que mais amo, o que estimo mais facilmente? “Eu mesmo”, como dizia Desproges. Isso diz o suficiente sobre a grandeza do humor, e sobre sua raridade. Como não seria uma virtude? /André Comte-Sponville