sábado, 14 de março de 2009

A COMPAIXÃO !

A compaixão tem má reputação; ninguém gosta de ser objeto dela, nem tampouco de senti-la. Isso a distingue nitidamente, por exemplo, da generosidade. Compadecer é sofrer com, e todo sofrimento é ruim. Como a compaixão poderia ser boa? No entanto, a linguagem nos adverte, também aqui, para não a rejeitarmos tão depressa assim. Seus contrários, podemos ler nos dicionários, são dureza, crueldade, frieza, indiferença, secura de coração, insensibilidade… Isso torna a compaixão amável, ao menos por diferença. Depois seu quase sinônimo, em todo caso seu duplo etimológico, é simpatia, que diz em grego exatamente o que compaixão diz em latim. Isso deveria recomendá-la à nossa atenção: num século em que a simpatia desempenha um papel tão importante, por que a compaixão é tão mal vista? Sem dúvida porque se preferem os sentimentos às virtudes. Mas que pensar então da compaixão, se é verdade, como tento mostrar, que ela pertence a essas duas ordens? Não será nisso, nessa ambigüidade, que ela encontra uma parte da sua fraqueza e o essencial de sua força? Antes de tudo, porém, uma palavra sobre a simpatia. Que qualidade é mais sedutora? Que sentimento é mais agradável? Essa mistura, que constitui seu encanto, já é singular: a simpatia é, ao mesmo tempo, uma qualidade (quando a suscitarmos, quando somos simpáticos) e um sentimento (quando a sentimos, quando temos simpatia). E, como essa qualidade e esse sentimento se correspondem, quase por definição, a simpatia promove entre dois indivíduos, e muitas vezes em ambos os sentidos, como que um encontro feliz. É um sorriso da vida, como que um presente do acaso. Que a simpatia não prova nada, no entanto, todos sabem, o que não prova nada mais sobre ela. Um canalha pode ser simpático? Claro, à primeira vista, mesmo à segunda. Mas um canalha, como vimos, também pode ser polido, fiel, prudente, temperante, corajoso… E por que não generoso, às vezes, e justo, ocasionalmente? Todavia isso diferencia, entre as virtudes completas, como diria Aristóteles, as que bastam para atestar o valor de um ser, como a justiça e a generosidade (o canalha só pode ser justo ou generoso de longe em longe, cessando então, ao menos desse ponto de vista, de ser canalha), e as virtudes parciais, as que, tomadas isoladamente, são compatíveis com a maioria dos vícios e das ignomínias. Um canalha pode ser fiel e generoso; mas, se fosse sempre justo e generoso, já não seria um canalha. A hipótese do canalha simpático, que é mais que uma hipótese, prova somente, pois, que a simpatia não é uma virtude completa, o que é claro, mas não que ela não é uma virtude, o que cumpre examinar. O que é a simpatia? É a participação efetiva dos sentimentos do outro (ter simpatia é sentir juntos, ou do mesmo modo, ou um pelo outro), assim como o prazer ou a sedução que dela resultam. Por conseguinte, como bem viu Max Scheler, a simpatia só vale pelo que valem esses sentimentos, se é que valem alguma coisa – em todo caso não poderia inverter o valor deles. “Partilhar a alegria que alguém sente diante do mal, (…) partilhar seu ódio, sua maldade, sua alegria perversa – tudo isso decerto nada tem de moral.” É por isso que a simpatia não poderia, enquanto tal, ser uma virtude: “A simpatia pura e simples não tem, como tal, a menor consideração pelo valor e pela qualidade dos sentimentos dos outros. (…) Ela é, em todas as suas manifestações, totalmente e por princípio indiferente ao valor.” Simpatizar é sentir com. Que isso pode abrir para a moral é óbvio, pois já é sair, pelo menos parcialmente, da prisão do eu. Resta saber com quem se simpatiza. Participar do ódio de outrem é ser odiento. Participar da crueldade de outrem é ser cruel. Assim, aquele que simpatiza com o torturador, participando de seu regozijo sádico, sentindo a excitação que ele sente, também partilha sua culpa ou, pelo menos, sua malignidade. Simpatia no horror: horrível simpatia! Logo se compreende que é diferente no caso da compaixão. No entanto, ela é uma das formas da simpatia: a compaixão é a simpatia na dor ou na tristeza, em outras palavras, é participar do sentimento do outro. Mas, justamente, se nem todos os sofrimentos se equivalem, se há inclusive maus sofrimentos (como o sofrimento do invejoso diante da felicidade do outro), nem por isso deixam de ser sofrimentos, e todo sofrimento merece compaixão. Há nisso uma assimetria notável. Todo prazer é um bem, mas nem sempre, longe disso, um bem moral (a maioria de nossos prazeres são moralmente indiferentes), nem mesmo – pensemos no prazer de um torturador – um bem moralmente aceitável. A simpatia no prazer não vale o mesmo que o prazer em questão, ou antes, se ela às vezes pode valer mais (pode ser louvável participar do prazer, ainda que moralmente indiferente, de outrem: é o contrário da inveja), é apenas na medida em que esse prazer não é moralmente pervertido, isto é, dominado pelo ódio ou pela crueldade. Todo sofrimento, ao contrário, é um mal, e um mal moral, não decerto por ele sempre ser moralmente condenável (há muitos sofrimentos inocentes, outros virtuosos ou heróicos), mas por sempre ser moralmente lastimável. A compaixão é essa lástima, ou antes, essa lástima é a forma mínima da compaixão. “Compartilhar a alegria que A sente diante do mal de que B é vítima”, indaga Max Scheler, “é mostrar uma atitude moral?” Claro que não. Mas participar do sofrimento de B, claro que sim! Será o caso, no entanto, se o sofrimento de B for um sofrimento ruim, por exemplo se ele sofrer com a felicidade de C? A compaixão responde com a afirmativa, e é o que a torna tão misericordiosa. Compartilhar o sofrimento do outro não é aprová-lo nem compartilhar suas razões, boas ou más, para sofrer; é recusar-se a considerar um sofrimento, qualquer que seja, como um fato indiferente, e um ser vivo, qualquer que seja, como coisa. É por isso que, em seu princípio, ela é universal, e tanto mais moral por não se preocupar com a moralidade de seus objetos – e é aí que ela leva à misericórdia. É sempre a mesma assimetria entre prazer e sofrimento. Simpatizar com o prazer do torturador, com sua alegria má, é compartilhar sua culpa. Mas ter compaixão por seu sofrimento ou por sua loucura, por tanto ódio nele, tanta tristeza, tanta miséria, é ser inocente do mal que o corrói, e recusar-se, pelo menos, a somar ódio ao ódio. Compaixão de Cristo por seus carrascos; de Buda pelos maus. Esses exemplos nos esmagam? Por sua elevação, sem dúvida, mas é assim que a percebemos. A compaixão é o contrário da crueldade, que se regozija com o sofrimento do outro, e do egoísmo, que não se preocupa com ele. Tão certamente quanto esses são dois defeitos, a compaixão é uma qualidade. Uma virtude? O Oriente (em especial o Oriente budista) responde que sim, e a maior de todas, talvez. Quanto ao Ocidente, é mais matizado, e é isso que precisamos examinar brevemente. Dos estóicos a Hannah Arendt (passando por Spinoza e por Nietzsche), seria infindável evocar os críticos da compaixão ou, para utilizarmos a palavra geralmente empregada por seus detratores, da piedade. Críticas de boa-fé, quase sempre, e com freqüência legítimas. A piedade é uma tristeza que sentimos diante da tristeza do outro, o que não salva esta, que continua, nem justifica aquela, que se acrescenta a esta. A piedade apenas aumenta a quantidade de sofrimento no mundo, e é isso que a condena. Para que acumular tristeza sobre tristeza, infelicidade sobre infelicidade? O sábio não tem piedade, diziam os estóicos, pois não tem pesar. Não, é claro, que não queira socorrer o próximo; mas para isso não necessita de piedade: “Em vez de lamentar as pessoas, por que não as socorrer, se possível? Não podemos ser generosos sem sentir piedade? Não somos obrigados a tomar sobre nós as penas dos outros; mas, se pudermos, aliviar os outros de suas penas.” Ação, pois, em vez de paixão, e generosa, em vez de piedosa. Sim, quando a generosidade existe e quando basta. Mas e em outras circunstâncias? Spinoza, nesse domínio, está bastante próximo dos estóicos. Cita-se com freqüência – seja para se regozijar, seja para se ofuscar – sua condenação da commiseratio: “A piedade, num homem que vive sob a condução da razão, é em si má e inútil”, isso porque o sábio “se esforça, na medida do possível, em não se deixar tocar” por ela. Está dito aí algo de essencial. A piedade é uma tristeza (é uma tristeza nascida, por imitação ou identificação, daquela de outrem). Ora, a alegria é que é boa, a razão é que é justa; o amor e a generosidade, não a piedade, devem levar-nos a ajudar nossos semelhantes, e para tanto bastam. Pelo menos bastam no sábio, isto é, naquele que, como diz Spinoza, “vive exclusivamente sob a condução da razão”. É por aí, talvez, que se reconhece a sabedoria: essa pura acolhida do verdadeiro, esse amor sem tristeza, essa leveza, essa generosidade serena e alegre… Mas quem é sábio? Para todos os outros, e é o que se esquece com tanta freqüência, isto é, para nós todos (pois ninguém é sábio por inteiro), a piedade é melhor que seu contrário e até do que a ausência dele: “Estou falando aqui expressamente do homem que vive sob a condução da razão”, esclarece Spinoza. “Aquele que nem a razão nem a piedade impelem a socorrer os outros chamamos justamente de inumano, pois não se parece com um homem.” De modo que, apesar de não ser uma virtude, a piedade “é boa”, pela mesma razão, aliás, que a vergonha ou o arrependimento: por ser fator de benevolência e de humanidade. Spinoza, não obstante o que se tenha dito a seu respeito, encontra-se aqui no oposto de Nietzsche: não se trata de derrubar os valores ou as hierarquias, mas simplesmente de aprender a praticar na alegria – isto é, por amor ou por generosidade – o que as pessoas de bem se esforçam na maioria das vezes por praticar na tristeza, isto é, por dever ou por piedade. “Há uma bondade que anuvia a vida”, escreverá Alain numa consideração muito spinozista de 1909, “uma bondade que é tristeza, que chamamos comumente piedade e que é um dos flagelos do humano”. Sim. Isso todavia é melhor que a crueldade e o egoísmo, como Montaigne e Spinoza viram, e como Alain confirma: “Evidentemente, a piedade, num homem injusto ou totalmente irrefletido, é melhor que uma insensibilidade de bruto.” Mas isso ainda não faz dela uma virtude: é apenas tristeza e paixão. “A piedade não vai longe”, dirá ainda Alain. No entanto ela é melhor que nada; é apenas um começo, mas o é. Aqui Spinoza talvez seja mais esclarecedor. Entre a moral do sábio e a moral de todo o mundo, há sem dúvida uma diferença importante quanto aos afetos envolvidos (dever e piedade de um lado, amor e generosidade de outro: tristeza ou alegria); mas não quanto às ações: o amor liberta da lei mas sem a abolir e, ao contrário, inscrevendo-a “no fundo dos corações”. A lei? Que lei? A única que Spinoza fez sua, que é lei de justiça e de caridade. A razão e o amor lhe bastam, no sábio; mas a piedade leva a ela, nos demais. Bem presunçoso seria quem pretendesse prescindir dela! De resto, não estou certo de que a piedade e a tristeza esgotem tudo o que entendo por compaixão. Não poderá existir também uma espécie de compaixão, se não alegre, pelo menos positiva, que seria menos sofrimento suportado do que disponibilidade atenta, menos tristeza do que solicitude, menos paixão do que paciência e escuta? Talvez fosse o que Spinoza visava ao falar de misericordia, que se traduz comumente por misericórdia, é a tradução mais fácil, mas que me parece mais próximo do que entendo por compaixão (pois nesta não transparecem as noções de erro e de perdão, essenciais à misericórdia), de modo que traduzirei assim sua definição: “A compaixão [misericordia] é o amor enquanto afeta o homem de tal sorte que ele se regozije com a felicidade de outrem e se entristeça com seu infortúnio.” É verdade que, no sentido usual, a compaixão vale antes – ou até exclusivamente – para o infortúnio do outro, não para sua felicidade. Mas parece haver essa hesitação em Spinoza, pois ele nos diz também, curiosamente, que entre a commiseratio e a misericordia, isto é, em nossa tradução, entre a piedade e a compaixão, “parece não haver nenhuma diferença, salvo, talvez, a de que a piedade se refere a uma afeição singular e a compaixão, a uma disposição habitual para a sentir” – curiosamente, dizia eu, pois é supor que também a piedade deveria poder não apenas entristecer-se com o infortúnio do outro, mas também, como a misericordia, regozijar-se com sua felicidade, o que excede o uso comum – e mesmo spinozista – da palavra. Mas, afinal de contas, que importa o uso, se nos entendemos quanto às definições? O que me esclarece nas definições – paralelas – da compaixão e da piedade é que a piedade (commiseratio) é definida como tristeza, ao passo que a compaixão (misericordia) é definida como amor, isto é, antes de tudo, como alegria. Isso não suprime a tristeza da compaixão, que todos nós podemos experimentar (quando nos regozijamos com a existência de alguém, isto é, quando amamos esse alguém ficamos tristes ao vê-lo sofrer), mas muda sua orientação, parece-me, e seu valor. Pois o amor é uma alegria, e, ainda que a tristeza prevalecesse, na compaixão e na piedade, são pelo menos tristezas sem ódio, ou são ódios apenas do infortúnio, não do infortunado, e preocupadas com ajudar, não com desprezar. A vida é difícil demais e os homens são infortunados demais para que esse sentimento não seja necessário e justificado. Mais vale uma verdadeira tristeza, eu disse tantas vezes, do que uma falsa alegria. Cabe acrescentar: mais vale um amor entristecido – o que é, exatamente, a compaixão – do que um ódio alegre. Mais valeria um amor alegre? Claro que sim: mais valeria a sabedoria ou a santidade, mais valeria o puro amor, mais valeria a caridade! “A compaixão”, escreve Jankélévitch, “é uma caridade reativa ou secundária, que necessita, para amar, do sofrimento do outro, que depende dos andrajos do enfermo, do espetáculo de sua miséria. A piedade está a reboque do infortúnio; a piedade só ama o próximo se ele é lastimável, a comiseração só simpatiza com o outro se ele é miserando! Espontânea, ao contrário, é a caridade (…): a caridade não espera encontrar o próximo em farrapos para descobrir sua miséria; nosso próximo, afinal de contas, pode e deve ser amado mesmo que não seja infortunado…” Sim, sem dúvida, mas é tão difícil! O infortúnio se desvia da inveja, por definição, e a piedade, do ódio – obstáculos a menos ao amor, à proximidade dilacerante do outro! A compaixão, precisamente por ser reativa, projetiva, identificatória, é o amor mais baixo, talvez, mas também o mais fácil. Nietzsche é divertido, querendo nos levar a repugná-la. Como se não a repugnássemos de antemão! Como se não fosse nosso desejo mais vivo, mais natural, mais espontâneo, nos livrarmos dela! Quem não se fartaria de seu próprio sofrimento? Quem não preferiria esquecer o dos outros, ou ser insensível a ele? Vauvenargues, mais lúcido que Nietzsche: “O avaro pronuncia em segredo: acaso sou encarregado da fortuna dos miseráveis? E repele a piedade que o importuna.” Viveríamos melhor sem a piedade, pelo menos os que vivem bem viveriam melhor. Mas esse conforto é a finalidade? Mas essa vida é a norma? De que adianta filosofar a marteladas, se é para nos acariciar assim, como o primeiro demagogo, no sentido do pêlo? Schopenhauer é muito mais profundo, ao ver na compaixão o móbil por excelência da moralidade e a origem – insuperável e não suscetível de ser abatida! – de seu valor. A compaixão se opõe diretamente à crueldade, que é o mal maior, ao egoísmo, que é o princípio de todos, e nos conduz com muito maior segurança do que um mandamento religioso ou uma máxima dos filósofos. Podemos derivar dela até mesmo as virtudes de justiça e de caridade, como queria Schopenhauer? Não totalmente, parece-me. Mas são virtudes últimas, que requerem um considerável desenvolvimento da humanidade ou da civilização. Quem pode saber se, sem a piedade, elas teriam surgido um dia? Notemos de passagem, sempre com Schopenhauer, que a compaixão também vale em relação aos animais. A maioria de nossas virtudes só visa à humanidade, é sua grandeza e seu limite. A compaixão, ao contrário, simpatiza universalmente com tudo o que sofre: se temos deveres para com os animais, como acredito, é antes de tudo por ela, ou nela, e é por isso que a compaixão talvez seja a mais universal de nossas virtudes. Dirão que também podemos amar os animais e demonstrar, por eles, fidelidade ou respeito. Sim, são Francisco de Assis nos dá um exemplo disso, no Ocidente, e tantos outros no Oriente. Seria inconveniente, todavia, colocar no mesmo plano os sentimentos que possamos ter pelos animais e aqueles, evidentemente superiores e muito mais exigentes, que devemos aos seres humanos. Não se é fiel a seu amigo como a seu cachorro, nem se respeita um homem, mesmo que desconhecido, da mesma maneira que se respeita um passarinho ou um cervo. No entanto, no que diz respeito à compaixão, essa evidência se esfuma. O que é pior: dar uma bofetada numa criança ou torturar um gato? Se este último ato é mais grave, como me inclino a pensar, é necessário concluir também que esse desgraçado animal, no exemplo considerado, merece muito mais nossa compaixão. A dor prevalece aqui sobre a espécie, e a compaixão sobre o humanismo. A compaixão é, assim, essa virtude singular que nos abre não apenas a toda a humanidade, mas também ao conjunto dos seres vivos ou, pelos menos, dos que sofrem. Uma sabedoria fundada nela, ou nutrida dela, seria a mais universal das sabedorias, como viu Lévi-Strauss, e a mais necessária. É a sabedoria do Buda, mas também a de Montaigne, e é a verdadeira. Sabedoria dos vivos, sem a qual toda sabedoria humana seria demais, ou antes, pouco demais. A humanidade, enquanto é uma virtude, é quase um sinônimo da compaixão, o que diz muito sobre ambas. O fato de podermos ser humanos também em relação aos animais, e devermos sê-lo, é a mais clara superioridade que a humanidade pode se arrogar, contanto que permaneça digna dela. Carecer totalmente de compaixão é ser inumano, e somente um homem pode sê-lo. Há lugar aqui para um novo humanismo, que não seria o desfrutar exclusivo de uma essência ou dos direitos que são vinculados a esta, mas percepção exclusiva – até prova do contrário – de exigências ou de deveres que o sofrimento do outro, qualquer que seja, nos impõe. Humanismo cósmico: humanismo da compaixão. Schopenhauer cita longamente Rousseau, e Lévi-Strauss, como se sabe, reivindica-o expressamente. De fato, é difícil não evocá-lo, tanto soube ele dizer, e foi um dos primeiros, o essencial – que, por sinal, coincide, pelos menos hoje, com a experiência ou a sensibilidade comuns. É bom reler a bela passagem do Segundo discurso, em que Rousseau mostra que a piedade é a primeira de todas as virtudes e a única natural. É que ela é um sentimento antes de ser uma virtude, “sentimento natural”, diz Rousseau, ainda mais forte por derivar sem dúvida do amor a si (por identificação com os outros) e temperar, assim, em todo homem, “o ardor que tem por seu bem-estar com uma repugnância inata a ver seu semelhante sofrer”. Compaixão sem margem, ou sem outra margem que não a dor, pois tudo o que sofre é, por isso mesmo, meu semelhante em alguma coisa. Compadecer é comungar no sofrimento; e essa comunidade, que é inumerável, nos impõe sua lei, ou antes, a propõe, e é uma lei de doçura: “Faz teu bem com o menor mal possível a outrem.” A piedade é, assim, o que nos separa da barbárie, como Mandeville viu, mas também, para Rousseau, a virtude-mãe, de que todas as demais derivam: Mandeville percebeu que, com toda a sua moral, os homens nunca teriam sido mais que monstros, se a Natureza não lhes tivesse dado a piedade em apoio à razão; mas ele não viu que dessa qualidade decorrem todas as virtudes sociais que ele quer questionar nos homens. De fato, o que é a generosidade, a clemência, a humanidade, senão a piedade aplicada aos fracos, aos culpados, ou à espécie humana em geral? A benevolência e a própria amizade são, se pesarmos bem, produções de uma piedade constante, fixada num objeto particular, porque desejar que alguém não sofra o que é senão desejar que ele seja feliz? Não sei se podemos ir tão longe, nem desejo, de resto, reduzir todas as virtudes a uma só. Por que esse privilégio da unidade? Mas estou de fato convencido de que a piedade se opõe ao pior, que é crueldade, e ao mal, que é egoísmo. Tanto quanto no caso da generosidade, isso não prova que ela esteja totalmente isenta deles. É ao contrário um lugar-comum, desde Aristóteles, ver na piedade “um infortúnio de que somos testemunhas (…), quando presumimos que ele pode alcançar a nós mesmos ou a algum dos nossos”. A piedade não seria mais que um egoísmo projetivo, ou transferencial; na verdade, “o que tememos para nós [é que] nos inspira piedade pelos outros que o padecem”, quando compreendemos que “poderíamos passar pela mesma provação”. Por que não? Mas também: que diferença faz? A piedade que sentimos não é menos real por causa disso, e aliás ela subsiste, notemos de passagem, no caso de males que não poderiam atingir-nos. A morte de uma criança e o sofrimento atroz de seus pais apiedarão igualmente o velho sem filhos. Sentimento absolutamente desinteressado? Não sei, e não me importo. Sentimento real, no entanto, e realmente compadecido. O resto são as pequenas intrigas do eu, que não valem mais do que valem as intrigas. Seria como querer condenar o amor, ou negar sua existência, a pretexto de que ele estaria sempre ligado a alguma pulsão sexual. Freud, no que concerne ao amor, não era tão bobo assim; por que, no que concerne à compaixão, nós o seríamos? Quanto à relação da compaixão com a crueldade, para ser mais paradoxal, também não é impensável. Primeiro porque a ambivalência se encontra em toda a parte, inclusive em nossas virtudes; depois porque a própria piedade pode suscitar ou autorizar a crueldade. Foi o que Hannah Arendt mostrou a propósito da Revolução Francesa (“a piedade, considerada como mola da virtude, revelou possuir um potencial de crueldade superior ao da própria crueldade”), e, se isso não condena em absoluto nem a piedade nem a revolução, justifica sim, em relação a uma e à outra, certa vigilância: o fato de que a piedade nos separa do pior, ou se opõe a ele, não impede, por vezes, que também possa levar a ele. A piedade não é nem uma garantia nem uma panacéia. Mas o que Hannah Arendt mostra é que a piedade só pôde justificar a violência e a crueldade, durante o Terror, devido à sua abstração: por piedade pelos infortunados em geral, isto é, pelo povo, no sentido do século XVIII, não se hesitou em fazer alguns infortunados singulares a mais… É o que distingue, para Hannah Arendt, a piedade da compaixão: a compaixão, ao contrário da piedade, “só pode compreender o particular, mas fica sem conhecimento do geral”; assim, ela não pode “ir além do que sofre uma pessoa única”, nem, a fortiriori, “ser inspirada pelos sofrimentos de uma classe inteira”. A piedade é abstrata, globalizante, loquaz. A compaixão, concreta, singular (ainda que tivéssemos, como Jesus, “a capacidade de sentir compaixão por todos os homens em sua singularidade, isto é, sem os reunir numa entidade como a humanidade sofredora”, como faria a piedade), naturalmente silenciosa. Daí a violência da piedade, sua crueldade às vezes, diante da grande doçura da compaixão. Ao aceitarmos essa distinção, poderíamos dizer que Robespierre e Saint-Just, em nome da piedade (pelos pobres em geral), não tiveram compaixão (pelos adversários, ou supostamente tais, da Revolução enquanto indivíduos singulares). Mas, então, essa piedade não é mais que um sentimento abstrato (Spinoza diria: imaginário), e a compaixão é que é uma virtude. Eu proporia outra distinção entre essas duas noções, que se somasse à que sugere Hannah Arendt (e não que a substituísse): a piedade, parece-me, nunca existe sem uma parte de desprezo ou, pelo menos, sem o sentimento, em quem a sente, de sua superioridade. Suave mari magno... Há, na piedade, uma suficiência que ressalta a insuficiência de seu objeto. Tomo como prova o duplo sentido do adjetivo pitoyable [piedoso, compassivo, mas também lamentável, deplorável. (N. do T.)], que designa primeiro aquele que é propenso à piedade, que a sente, mas também, e cada vez mais, aquele que é objeto dessa piedade ou a merece. Ora, neste último sentido, pitoyable é claramente depreciativo: é sinônimo de medíocre, lastimável ou desprezível. Nada semelhante no caso da compaixão: compatissant [compassivo] só se diz de quem sente compaixão, e nenhum adjetivo passivo (como poderia ser compatissable [compassível]) lhe corresponde em francês. Talvez porque a compaixão não suponha, quanto a seu objeto, nenhum juízo de valor determinado: pode-se ter compaixão pelo que se admira, como também pelo que se condena. Em compensação, parece-me que só temos compaixão pelo que respeitamos, ao menos um pouco; senão seria – em todo caso é a distinção que proponho – piedade, não mais compaixão. Essa distinção parece-me fiel ao espírito da língua. Podemos participar àquele que sofre, por exemplo por estar gravemente enfermo, nossa compaixão ou nossa simpatia. Não ousaríamos lhe exprimir nossa piedade, que seria considerada depreciativa ou insultante. A piedade é sentida de cima para baixo. A compaixão, ao contrário, é um sentimento horizontal, só tem sentido entre iguais, ou antes, e melhor, ela realiza essa igualdade entre aquele que sofre e aquele (ao lado dele e, portanto, no mesmo plano) que compartilha do seu sofrimento. Nesse sentido, não há piedade sem uma parte de desprezo; não há compaixão sem respeito. É, talvez, o que Alain queria dizer quando escrevia que “o espírito não tem piedade, e não pode ter; o respeito o desvia dela”. Não é, por certo, que o espírito seja implacável, se entendemos com isso que ele nunca poderia ceder ou lamentar. Mas como poderia apiedar-se do que respeita ou venera? Isso porque, dizia ainda Alain, “a piedade é do corpo, não do espírito”: o espírito (o espírito respeitoso, o espírito fiel) só pode sentir compaixão. Não caiamos, no entanto, na religião ou no espiritualismo. Estritamente falando, não é o espírito que tem compaixão ou respeito, o respeito e a compaixão é que fazem o espírito. Assim, o espírito nasce no sofrimento: no próprio, e é coragem; no do outro, e é compaixão. Portanto, deve-se evitar confundir a compaixão com a condescendência ou, no sentido caricatural que essas palavras adquiriram, com as boas ações, a caridade (no sentido de que se faz caridade) ou a esmola. Pode-se pensar por exemplo, com Spinoza, que cabe ao Estado, não aos particulares, ocupar-se dos miseráveis; que, em conseqüência, contra a miséria, mais vale fazer política do que fazer caridade. Eu estaria de acordo. Ainda que desse tudo o que tenho, até tornar-me tão pobre quanto eles, em que isso alteraria a miséria, no fim das contas? Para problema social, solução social. A compaixão, como a generosidade, pode assim justificar, por exemplo, que se lute pelo aumento dos impostos, e por sua melhor utilização, o que seria sem dúvida mais eficaz (e para muitos de nós mais oneroso, logo mais generoso!) do que as moedinhas que damos a torto e a direito. Isso não nos dispensa, por outro lado, de termos para com os pobres ou os excluídos uma atitude de proximidade fraterna, de respeito, de disponibilidade à ajuda, de simpatia, em suma de compaixão – a qual, aliás, pode se manifestar também, pois a política não basta a tudo, por uma ação concreta de benevolência, no sentido de Spinoza, ou de solidariedade. Cada um faz o que pode nesse sentido, ou antes, o que quer, em função de seus meios e do pouco de generosidade de que é capaz. O ego comanda e decide. Mas não sozinho, e é isso que significa a compaixão. A compaixão é um sentimento. Enquanto tal, é estendida ou não, não é ordenada. É por isso que, como Kant nos lembra, ela não pode ser um dever. Todavia, os sentimentos não são um destino, que poderíamos apenas ter de suportar. O amor não se decide, mas se educa. O mesmo vale para a compaixão: não é um dever senti-la, mas sim, explica Kant, desenvolver em si a capacidade de senti-la. Nisso a compaixão também é uma virtude, isto é, ao mesmo tempo, um esforço, um poder e uma excelência. O fato de ela ser um e outro – sentimento e virtude, tristeza e poder – explica o privilégio que Rousseau e Schopenhauer, com razão ou sem (sem dúvida, com razão e sem), nela viram: ela é o que permite passar de um ao outro, da ordem afetiva à ordem ética, do que sentimos ao que queremos, do que somos ao que devemos ser. Dir-se-á que o amor também realiza essa passagem. Sem dúvida. Mas o amor não está a nosso alcance, a compaixão sim. A compaixão, dizia eu, é a grande virtude do Oriente budista. Sabe-se que a caridade – desta vez no bom sentido do termo: como amor de benevolência – é a grande virtude, pelo menos em palavras, do Ocidente cristão. Será necessário escolher? Para quê, se as duas não se excluem? Se fosse preciso, porém, parece-me que poderíamos dizer o seguinte: a caridade seria melhor, com certeza, se dela fôssemos capazes; mas a compaixão é mais acessível, assemelha-se a ela (pela doçura) e a ela pode nos levar. Quem pode ter certeza de já ter conhecido um verdadeiro movimento de caridade? De compaixão, quem pode duvidar? É necessário começar pelo mais fácil, e somos muito mais dotados, infelizmente, para a tristeza do que para a alegria… Coragem a todos, e compaixão também para si. Ou, para dizer de outro modo: a mensagem de Cristo, que é de amor, é mais exaltante; mas a lição de Buda, que é de compaixão, mais realista. “Ama e faz o que queres”, pois – ou compadece-te e faz o que deves. /André Comte-Sponville