“E foi mais ou menos assim pessoal, que esta fábrica cresceu e inundou São Miguel, com sua negra fumaça, seu ácido, seu asco”. Depoimento de Severino Barbosa de Sousa, ex-operário da Nitro Química. Explicitando que seu estudo “(…) é fruto de uma postura política científica partindo de um olhar marxista”, a autora apresenta na tese O bairro à sombra da chaminé a história “(…) da formação da classe trabalhadora da Companhia Nitro Química Brasileira (1935 a 1960)”. História esta que se confunde com o próprio desenvolvimento do bairro de São Miguel Paulista, na Zona Leste de São Paulo — um dos mais populosos e ricos em tradição da capital. Neste trabalho a autora mostra a trajetória da empresa, de origem americana e associada com os grupos brasileiros Klabin e Votorantim, produtora de fios, seda artificial e outros produtos químicos e têxteis. Num primeiro momento, devido à demanda de mão-de-obra, a indústria incentiva a migração de nordestinos e, em menor contingente, de mineiros. Através de empreiteiros contratados, seus caminhões transportam como gado centenas de retirantes famintos. A exemplo da experiência de outras fábricas, esta é a saga de milhões de trabalhadores brasileiros. A empresa teve momentos de altos e baixos na economia. Sempre gozando das benesses do Estado, inclusive com a isenção de impostos quando da transferência das máquinas dos Estados Unidos, a fábrica ficou conhecida pela péssima qualidade dos produtos fabricados e, principalmente, pela violenta exploração dos trabalhadores. Era a fábrica da morte. A Nitro Química também ficou conhecida pela rigidez de seus regulamentos internos. Mesmo as idas ao banheiro têm seu tempo controlado. O trabalhador é proibido de ler jornais ou livros nos momentos de folga. As conversas em rodinhas de operários são dissolvidas pelos supervisores. Citando Michel Foucault, a autora fala da “(…) micropenalidade do tempo, que reprime atrasos, ausências, interrupções das atividades e tudo aquilo que signifique redução do ritmo de exploração do capital”. O relato da resistência dos trabalhadores à situação de explorados na fábrica e marginalizados no bairro da periferia é um dos pontos altos da pesquisa. A autora demonstra que “(…) os habitantes de São Miguel Paulista sempre se mantiveram na oposição política”, mesmo sem maior consistência ideológica. Já no espaço fabril a luta será hegemonizada pelos militantes do Partido Comunista, que têm atuação intensa e criativa no interior da empresa. A primeira greve dos operários da Nitro Química ocorreu em 1946. Arrancou algumas conquistas, mas foi seguida de implacável repressão. A indústria, dirigida por José Ermírio de Moraes demite os líderes, fecha o restaurante interno e discrimina os filhos de alguns grevistas na creche da empresa. Começa a vigorar a lista negra. Os comunistas desencadearam então, no bairro, a campanha da fome. Repressão intensa mais ação paternalista foi a receita seguida pela Nitro. Núcleo residencial, restaurante interno, berçário, clube de regatas. “A fábrica mascarada foi aos poucos descaracterizada como o locus da opressão e exploração, ao contrário, mostrou-se para muitos como uma grande família, um segundo lar muito feliz” — comenta a autora. A leitura desta pesquisa revela a formação de classe dos operários da Nitro Química. Ela estuda todas as contradições deste processo. De um lado, a empresa e seus eficazes instrumentos de manutenção da hegemonia, procurando criar “(…) um operário dócil, submisso e economicamente produtivo”. Do outro o trabalhador — tanto no espaço fabril como no local de moradia — questionando o sistema de exploração capitalista. /ROCHA, Antonia Sarah Azis. O bairro à sombra da chaminé. Tese de mestrado apresentada à PUC-SP, 1992.