A doçura é uma virtude feminina. É por isso, talvez, que ela agrada, sobretudo, nos homens. Poderão objetar-me que as virtudes não têm sexo, o que é verdade. Mas isso não nos dispensa de o ter, e o sexo marca todos os nossos gestos, todos os nossos sentimentos e até as nossas virtudes. A virilidade, nada obstante o que a etimologia possa sugerir, não é uma virtude, nem o princípio de nenhuma. Mas há uma maneira mais ou menos viril, ou mais ou menos feminina, de ser virtuoso. A coragem de um homem não é igual a de uma mulher, nem sua generosidade, nem seu amor. Veja-se Simone Weil ou Etty Hillesum: nenhum homem nunca escreverá, nem viverá, nem amará como elas… Apenas a verdade é absolutamente universal, logo assexuada. Mas a verdade não tem moral, nem sentimentos, nem vontade… Como poderia ser virtuosa? Só há virtude do desejo, e que desejo não é sexuado? “Há um pouco de testículo”, dizia Diderot, “no fundo de nossos raciocínios mais sublimes e de nossa ternura mais pura.” Testículo dizia-se então também para os ovários; mas isso não anula a diferença entre um e outro… Se só há valor para o desejo, como creio, e por ele, é normal que todos os nossos valores sejam sexuados. Não, claro, no sentido de que cada um deles seria reservado a um dos dois sexos, queira Deus que não, mas antes no sentido de que cada indivíduo terá, em função do que é, homem ou mulher, esta ou aquela maneira, masculina ou feminina (e o sexo biológico não basta para tanto), de vivê-los ou carecer deles… Que desastre, nota Todorov, “se todo o mundo se alinhasse aos valores masculinos”! Seria o triunfo da guerra, ainda que fosse justa, e das idéias, ainda que fossem generosas. Faltaria o essencial, que é o amor (ninguém me tirará da cabeça que o amor, tanto para o indivíduo como para a espécie, começa pela mãe), que é a vida e que é a doçura. Não me venham objetar, por piedade, que as mulheres também têm idéias: já o percebi. Mas acho que percebi também que elas com freqüência se deixam enganar menos que os homens pelas idéias, o que, é claro, depõe em favor das mulheres. Poucas mulheres, segundo creio, ter-se-iam disposto a escrever a Crítica da razão pura [de Kant] ou a grande Lógica de Hegel, por motivos que, parece-me, prendem-se ao que torna esses livros, apesar de geniais, tão pesados e aborrecidos: eles supõem uma seriedade intelectual, uma fé nas idéias, uma idolatria do conceito, que um pouco de feminilidade torna improváveis, mesmo num homem, e quase risíveis, não fossem tão mortíferas. O que há de mais pobre que uma abstração? O que há de mais morto e mais ridículo do que levá-la totalmente a sério? Quanto à violência feminina, também já dei com ela. Mas quem poderá acreditar que é apenas por acaso que a quase totalidade dos crimes de sangue são consumados por homens? Que quase só os meninos brincam de guerra? E que quase só os homens a fazem e, às vezes, nela encontram prazer? Dir-me-ão que isso decorre tanto ou mais da cultura do que da natureza. Talvez, mas o que me importa? Eu nunca disse que feminilidade e masculinidade são exclusivamente biológicas. A diferença sexual é demasiado essencial, demasiado onipresente, para não se explicar sempre e simultaneamente pelo corpo e pela educação, pela cultura ao mesmo tempo em que pela natureza. Mas a cultura também é real. “Ninguém nasce mulher, mas se torna mulher”? É evidentemente menos simples que isso. Nascemos mulher ou homem, depois nos tornamos o que somos. A virilidade não é nem uma virtude nem uma falta. Mas é uma força, assim como a feminilidade é uma riqueza (inclusive nos homens), e uma força também, mas diferente. Tudo em nós é sexuado – salvo a verdade, insisto -, e tanto melhor. Que diferença é mais rica e mais desejável? Mas voltemos à doçura. O que ela tem de feminino, ou que assim parece, é uma coragem sem violência, uma força sem dureza, um amor sem cólera. É o que ouvimos tão bem em Schubert, o que temos tão bem em Etty Hillesum. A doçura é antes de tudo uma paz, real ou desejada: é o contrário da guerra, da crueldade, da brutalidade, da agressividade, da violência… Paz interior, e a única que é uma virtude. Muitas vezes permeada de angústia e de sofrimento (Schubert), às vezes iluminada de alegria e de gratidão (Etty Hillesum), mas sempre desprovida de ódio, de dureza, de insensibilidade… “Aguerrir-se e endurecer-se são duas coisas diferentes”, notava Etty Hillesum em 1942. A doçura é o que as distingue. É amor em estado de paz, mesmo na guerra, tanto mais forte quanto é aguerrido, e tanto mais doce. A agressividade é uma fraqueza, a cólera é uma fraqueza, a própria violência, quando já não é dominada, é uma fraqueza. E o que pode dominar a violência, a cólera, a agressividade, senão a doçura? A doçura é uma força, por isso é uma virtude: é força em estado de paz, força tranqüila e doce, cheia de paciência e de mansuetude. Veja-se a mãe com seu filho (“a doçura é toda sua fé”). Veja-se Cristo ou Buda, com todos. A doçura é o que mais se parece com o amor, sim, mais ainda que a generosidade, mais ainda que a compaixão. Aliás, ela não se confunde nem com uma nem com outra, embora na maioria das vezes as acompanhe. A compaixão sofre com o sofrimento do outro; a doçura se recusa a produzi-lo ou a aumentá-lo. A generosidade quer fazer bem ao outro; a doçura se recusa a lhe fazer mal. Isso parece ser favorável à generosidade, e talvez o seja. Quantas generosidades importunas, porém, quantas boas ações invasoras, esmagadoras, brutais, que um pouco de doçura teria tornado mais leves e mais amáveis? Sem contar que a doçura torna generoso, pois é fazer mal ao outro não lhe fazer o bem que ele pede ou que poderíamos fazer. E que ela vai além da compaixão, pois a antecipa, pois não precisa dessa dor da dor… Mais negativa talvez do que a afirmativa generosidade, porém mais positiva também do que a compaixão totalmente reativa, a doçura mantém-se entre as duas, sem nada que pese ou ostente, sem nada que force ou que agrida. Eu citava, a propósito da pureza, a notável fórmula de Pavese, em seu Diário: “Você será amado no dia em que puder mostrar sua fraqueza, sem que o outro se sirva dela para afirmar sua força.” Era querer ser amado puramente, dizia eu; era querer também ser amado com doçura, isto é, ser amado. Doçura e pureza andam juntas, quase sempre, pois a violência é o mal primeiro, a obscenidade primeira, pois o mal faz mal, pois o egoísmo, corrompe tudo, é ávido, indelicado, brutal… Que delicadeza, ao contrário, que doçura, que pureza, na carícia da amante! Toda a violência do homem vem morrer aí, toda a brutalidade do homem, toda a obscenidade do homem… “Minha doçura”, diz ele, e é uma palavra de amor, a mais verdadeira talvez, e a mais doce… Se os valores são sexuados, nota Todorov, todo indivíduo é necessariamente heteróclito, imperfeito, incompleto: só na androginia ou no casal podemos encontrar o caminho de uma humanidade mais consumada e, com isso, mais humana. O homem só é salvo do pior, quase sempre, pela parte de feminilidade que traz em si. Vejam o brutamontes, que não a tem, vejam nossos trens de recrutas, todo o horror dos homens entre si, toda a violência, toda a vulgaridade… Não sei se podemos dizer o mesmo das mulheres, se elas precisam do mesmo modo de uma parte da masculinidade. “A mulher, mais perto do humano do que o homem…”, dizia Rilke. Que a androginia, também nas mulheres, possa ser uma riqueza, um encanto, uma força, não há dúvida. Mas uma necessidade? Mas uma virtude? Confunde-se com demasiada freqüência feminilidade com histeria, que não é (inclusive nos homens) nada mais que sua caricatura patológica. A histérica quer seduzir, ser amada, aparecer… Não é doçura, não é amor: é narcisismo, artifício, agressividade desviada, tomada de poder (“a histérica”, dizia Lacan, “procura um senhor sobre o qual reinar”), sedução, de fato, mas no sentido em que a sedução desvia ou engana… É a guerra amorosa, e o contrário do amor. É a arte da conquista, e o contrário do dom. É a arte da exibição, e o contrário da verdade. A doçura é o oposto: é acolhida, é respeito, é abertura. Virtude passiva, virtude de submissão, de aceitação? Talvez, e mais essencial ainda por causa disso. Que sabedoria sem passividade? Que amor sem passividade? Que ação, inclusive, sem passividade? Isso, que pode surpreender ou chocar um ocidental, seria no Oriente uma evidência. Talvez porque o Oriente seja mulher, como sugere em algum lugar Lévi-Strauss, ou, em todo caso, porque se deixe enganar menos pelos valores da virilidade. A ação não é o ativismo, não é a agitação, não é a impaciência. A passividade, inversamente, não é a inação ou a preguiça. Deixar-se levar pela corrente, diz Prajnânpad, nadar com ela, nela, em vez de se esfalfar contra as águas ou se deixar arrastar… A doçura submete-se ao real, à vida, ao devir, ao mais ou menos do cotidiano: virtude de flexibilidade, de paciência, de devoção, de adaptabilidade… O contrário do “macho pretensioso e impaciente”, como diz Rilke, o contrário da rigidez, da precipitação, da força teimosa ou obstinada. O esforço não basta a tudo. “Por uma necessidade natural”, dizia Tucídides, “todo ser exerce sempre todo o poder de que dispõe.” A doçura é a exceção que confirma essa regra: é poder sobre si, contra si se preciso. O amor é recuo, mostra Simone Weil, recusa de exercer sua força, seu poder, sua violência: o amor é doçura e dom. É o contrário do estupro, é o contrário do assassínio, é o contrário da tomada de poder ou de controle. É Eros libertado de Tanatos e de si. Virtude sobrenatural, dizia Simone Weil, mas não acredito: veja-se uma gata, com seus filhotes, veja-se um cachorro que brinca com as crianças… A humanidade não inventa a doçura. Mas a cultiva, mas se alimenta dela, e é isso que torna a humanidade mais humana. O sábio, dizia Spinoza, age “com humanidade e doçura” (humaniter et benigne). Essa doçura é a benignidade de Montaigne, que devemos até aos animais, dizia ele, ou mesmo às árvores e às plantas. É a recusa a fazer sofrer, a destruir (quando não é indispensável), a devastar. É respeito, proteção, benevolência. Ainda não é caridade, que ama seu próximo como a si mesma, o que suporia, como já vira Rousseau, que adotássemos esta “máxima sublime”: “Faz ao outro o que queres que ele te faça.” A doçura não visa tão alto assim. É uma espécie de bondade natural ou espontânea, cuja máxima, “bem menos perfeita, porém mais útil talvez do que a precedente”, seria antes a seguinte: “Faz teu bem com o menor mal possível ao outro.” Essa máxima da doçura, menos elevada sem dúvida do que a da caridade, menos exigente, menos exaltante, é também mais acessível, por isso mais útil de fato, e mais necessária. Podemos viver sem caridade, toda a história da humanidade o prova. Mas sem um mínimo de doçura, não. Os gregos, em especial os atenienses, gabavam-se de ter levado a doçura ao mundo. É que viam na doçura o contrário da barbárie e, portanto, um sinônimo aproximado da civilização. O etnocentrismo não data de ontem. É verdade, porém, que nossa civilização em todo caso é grega, e que nossa doçura necessariamente deve algo à deles. Ora, o que é a doçura (praotés) para um grego antigo? A mesma coisa que para nós: o contrário da guerra (os primeiros exemplos atestados são os do verbo, que significa apaziguar), o contrário da cólera, o contrário da violência ou da dureza. É menos uma virtude, a princípio, do que o encontro de várias, ou sua fonte comum: No nível mais modesto, a doçura designa a gentileza das maneiras, a benevolência que atestamos para com outrem. Mas ela pode intervir num contexto muito mais nobre. Manifestando-se em relação aos infortunados, ela torna-se próxima da generosidade ou da bondade; em relação aos culpados, torna-se indulgência e compreensão; em relação aos desconhecidos, os homens em geral, torna-se humanidade e quase caridade. Na vida política, do mesmo modo, ela pode ser tolerância, ou ainda clemência, conforme se trate das relações com cidadãos, com súditos ou com vencidos. Na origem desses diversos valores está, porém, uma mesma disposição a acolher o outro como alguém a quem queremos bem – pelo menos em toda a medida em que podemos fazê-lo sem faltar com algum outro dever. E o fato é que os gregos tiveram o sentimento dessa unidade, pois todos esses valores tão diversos podem, ocasionalmente, ser designados pela palavra praos. [J. de Romilly] Aristóteles fará dela uma virtude integral, que será o meio-termo, na cólera, entre estes dois defeitos que são a irascibilidade e a frouxidão: o homem doce ocupa o meio entre “o homem colérico, difícil e selvagem” e o homem “servil e tolo”, à força de impassibilidade ou de placidez excessiva. Pois há cóleras justas e necessárias, assim como há guerras e violências justificadas: a doçura é que delas decide e dispõe. Aristóteles sente-se embaraçado, porém, pois vê que sua virtude de praotés “inclina-se perigosamente no sentido da falta”. Se o homem doce é aquele “que está colérico com as coisas com que cumpre estar e contra as pessoas que o merecem, e que ademais o está da maneira que convém, no momento e por tanto tempo quanto o devido”, e não mais freqüentemente, por mais tempo nem em excesso, isso não resolve a questão dos critérios nem dos limites. O doce só é assim chamado porque o é mais que seus concidadãos, e quem sabe então aonde ele vai se deter? Quem vai julgar do objeto, do alcance e da duração legítimas de uma cólera? A doçura pode se opor aqui, e de fato se oporá, à magnanimidade, assim como a altivez grega à humildade judaico-cristã: “Suportar ser achincalhado ou deixar com indiferença insultarem seus amigos é coisa de uma alma vil”, escreve Aristóteles. O mestre de Alexandre, tanto quanto seu aluno, não era dado a oferecer a outra face… Há um extremismo da doçura, que pode ser julgado desprezível ou sublime, de acordo com o ponto de vista adotado, e como que uma tentação evangélica. Covarde? Não, pois a doçura só é doçura se nada deve ao medo. Simplesmente é necessário escolher aqui entre duas lógicas, a da honra e a da caridade, e ninguém ignora para que lado pende a doçura… Devemos então, por doçura, pregar a não violência? A coisa não é tão simples assim, pois a não-violência, levada ao extremo, nos impediria de combater eficazmente a violência criminosa ou bárbara, não apenas quando nos visa, ou que a caridade ainda poderia admitir ou justificar, mas quando visa outrem, por exemplo quando massacra ou oprime inocentes indefesos, o que nem a caridade nem a justiça poderiam tolerar. Quem não lutaria para salvar uma criança? Quem não se envergonharia de não o fazer? “A não-violência só é boa se for eficaz”, escreve Simone Weil. Isso quer dizer que a escolha não é de princípio, mas de circunstância. Para eficácia igual ou superior, a não-violência é sem dúvida preferível, como a doçura lembra e Gandhi, na Índia, compreendera. Mas calcular a eficácia respectiva deste ou daquele meio cabe à prudência, que não poderíamos sacrificar, quando está em jogo o outro, sem faltar com a caridade. Como fazer, por exemplo, se uma mulher é atacada diante de mim? “Use a força”, responde Simone Weil, “a não ser que você tenha condições de defendê-la, com igual probabilidade de sucesso, sem violência.” Isso, é claro, depende dos indivíduos, das situações e, acrescenta Simone Weil, “também depende do adversário”. A não-violência contra as tropas britânicas, vá lá. Mas e contra Hitler e suas panzerdivisions? A violência é melhor que a cumplicidade, que a fraqueza diante do horror, que a frouxidão ou a complacência diante do pior. Portanto, não se confundam os pacíficos, que gostam da paz e estão dispostos a defendê-la, inclusive mediante a força, com os pacifistas, que recusam toda guerra, qualquer que seja e contra quem quer que seja. É erigir a doçura em sistema, ou em absoluto, e impedir-se de defender de verdade, pelo menos em certas situações, aquilo mesmo – a paz – que se reivindica. Ética de convicção, diria Max Weber, mas irresponsável, às vezes, de tanto ser convencida… Não há valor absoluto, em todo caso a doçura não o poderia ser, não há sistema da moral, não há virtude suficiente. O próprio amor não justifica tudo, não desculpa tudo: ele não substitui a prudência, não substitui a justiça! A fortiriori, a doçura só é boa se não sacrifica as exigências da justiça e do amor, que se devem antes de tudo aos mais fracos, convém recordar, e muito mais às vítimas do que aos carrascos. Em que casos então temos moralmente o direito (ou mesmo o dever) de lutar e, em especial, de matar? Exclusivamente quando é necessário para impedir um mal maior, por exemplo mais mortos, ou mais sofrimentos, ou mais violências… Dir-se-á que cada um poderá julgar a seu modo e que tal princípio, portanto, não oferece nenhuma garantia. Mas como poderia haver garantias? Só há casos particulares, casos singulares, e ninguém pode decidir em nosso lugar. A pena de morte, por exemplo, pode ser justificada? Por que não, se é eficaz? O problema, nesses domínios, é menos moral do que técnico e político. Se a pena de morte contra os assassinos de crianças pudesse salvar um número maior de crianças (por um eventual efeito dissuasivo e pela impossibilidade de reincidência), ou mesmo igual, ou mesmo um pouco menor dos que o das execuções efetivas de criminosos, quem poderia contestá-la? A não ser que se faça da vida humana um absoluto, como se diz, e, mais uma vez, por que não? Mas então é necessário condenar também o aborto: por que se protegeria mais um assassino de criança do que uma criança em gestação? Mas então não se tinha o direito de matar os nazistas, durante a última guerra, e os juízes de Nurembergue são culpados, pois mandaram executar Goering, Ribbentrop e vários de seus pares. O absoluto é o absoluto, e por definição não poderia depender nem das circunstâncias nem dos indivíduos. Para mim, que não creio em nenhum absoluto (o que há de mais relativo do que a vida e do que o valor da vida?), o problema é todo de oportunidade, de medida, de eficácia, disse eu, e concerne menos à doçura, no caso, do que à prudência – ou antes, a doçura sob o controle da prudência e da caridade. Não se trata primeiro de punir: trata-se de impedir. No que diz respeito à pena de morte, nos casos de direito comum, não tenho opinião formada, nem dou muita importância a isso: por acaso a prisão perpétua ou mesmo durante vinte ou trinta anos é tão melhor assim? Marcel Conche propõe a esse respeito uma solução razoável, que me agradaria bastante [Não a abolição da pena de morte, mas sua suspensão, que “poderia ser anulada, por exemplo, se nos víssemos de novo às voltas com inimigos públicos do tipo dos que foram julgados em Nurembergue”.]. Remeto a ele. Mas não me farão dizer que nunca se deve matar, em nenhum caso, nem que um Hitler, se tivesse sido pego vivo, ou algum de seus sucessores, deveria ter acabado seus dias na prisão. Elas são muito mal guardadas, muito pouco seguras, e as vítimas – passadas e futuras – têm o direito de exigir mais. Problema político, dizia eu, ou técnico. Isso não resolve a questão moral. Se admitirmos que algumas vezes pode ser legítimo matar, quando for para combater um mal maior, nem por isso o valor individual deixará de variar, como sempre, e mesmo numa circunstância supostamente comum (por exemplo, na guerra), em função dos indivíduos. Cada um que julgue por conta própria, mas como? Seria necessário um critério. Simone Weil com seu rigor habitual, propõe um, que é cheio de doçura e de exigência: Guerra. Manter intacto em si o amor à vida; nunca infligir a morte sem aceitá-la Caso a vida de X… estivesse ligada à sua a tal ponto que as duas mortes devessem ser simultâneas, você iria querer apesar disso que X morresse? Se o corpo e a alma inteiros aspiram à vida e se, apesar disso, sem mentir, você puder responder que sim, então tem o direito de matar. Dessa doçura muito poucos serão capazes, e só eles poderão ser violentos, às vezes, com toda inocência. Para nós, que não o somos, que estamos longe de ser, isso não quer dizer que a violência nunca se justifique (ela se justifica, quando sua ausência seria pior), mas simplesmente que ela nunca é inocente. Felizes os doces? Eles não pedem tanto assim. Mas só eles, não fosse a misericórdia, poderiam sê-lo inocentemente. Para os demais a doçura vem limitar a violência, tanto quanto possível, ao mínimo necessário ou aceitável. Virtude feminina, graças à qual – e só a ela – a humanidade é humana. /André Comte-Sponville