sábado, 18 de outubro de 2008

MESTRES INESQUECÍVEIS !

Deus, em sua magnânima sabedoria, inventou a criança com apenas três funções em funcionamento: berrar, comer e ‘fazer cocô’. Berrar já vem ajustado no máximo da precisão. Tá com fome? Berra! Tá com sono? Berra! Acabou o sono? Berra! Cagou? Berra! Tá com tédio? Berra! Quer berrar? Berra! Ou a gente ensina essas crianças ou vão berrar a vida inteira. Como de fato berram mesmo, só que depois de grandes berram gemendo, fazendo biquinhos, emburrando, virando a bunda, reclamando, e esticando as vogais. Aaaaaaahhh... Nããããããããooo!!! Não queeeero... Iiiiiiiiihhh... Creeeeedo! O humano não tem nada de imbecil ao nascer. Vai ficando dependendo de onde é criado e por quem é treinado. Como qualquer animalzinho, ama e se apega a quem lhe der comida e conforto e em seguida a quem lhe ensina as coisas. Minha mãe nunca foi de ficar rolando no chão com os filhos. Éramos seis. Mas ela contava estórias longas, de livros bons de Monteiro Lobato, e a gente que não sabia ler direito (acho que nem esquerdo), ficávamos fascinados com as aventuras que minha mãe narrava. Logo que aprendi a ler a primeira coisa que fui fazer foi ir lá conferir se minha mãe contava a história inteira ou pulava umas partes. Já tinha contado dezenas, repetido todas várias vezes, eu até sabia todas de cor. Quem me ensinou a ler foi a dona Diva. Desde que me tornei cronista, em 1982, todo dia 15 de outubro, Dia do Professor, sempre fiz uma homenagem a ela. E todos os anos ela se emocionava. Até que um dia morreu. Mas eu continuo homenageando. Dona Diva foi a pessoa que abriu o mundo para mim. Me deu a chave para qualquer biblioteca: a capacidade de ler E ENTENDER o que leu. Não só saber que 2+2=4, mas principalmente Dona Diva me ensinou POR QUÊ 2+2=4. Você sabe por quê 2+2=4? Eu tive um professor de Francês que dizia que aí morava a diferença entre o sujeito de boa memória e um inteligente. A memória facilitava um a responder com rapidez. Afinal ele apenas decorara. O outro sabia explicar que ao se juntar duas unidades de qualquer coisa a outras duas unidades, ao fazer a recontagem o resultado seria 4 unidades e é essa a razão de 2+2 ser igual a 4. O único defeito da Dona Diva talvez tenha sido me ensinar demais, talvez estimulada por uma vertiginosa vontade de aprender que eu tinha na época. Daí, quando fui para a escola regular já sabia tudo o que ensinavam por lá, queria aprender outras coisas, não ensinavam, e aí eu não perdi a vontade de aprender e saber as coisas, mas perdi totalmente o interesse em ir para a escola. Escola para mim, infelizmente, infelizmente mesmo, nunca foi um lugar de aprender coisas. Sempre foi um lugar de tirar certificados. E isso sempre me irritou. Então aprendi sozinho e com a ajuda de outros mestres avulsos. O Ismael foi um professor de Química que me fez entender que a Química se prova mas se vê pouco. Tem que ter fé. Aprendi um monte de coisinhas úteis sobre Química. Eu tenho uma irmã que é química. A cada vez que ela lê relatórios numéricos tramados por computadores, cheio de gráficos estranhos, olha, entende tudo e comenta: “Acho que descobri uma nova substância!”, eu me lembro das palavras do mestre Ismael. Como alguém pode descobrir uma substância olhando números? Com certeza alguém a ensinou. Outro mestre de curta duração mas que nunca esquecerei é o professor Hare Krishna (óia o nome), que me disse a frase “em Física tudo se prova e se vê”, principalmente em cinemática, que é a movimentação dos corpos. Esse mestre tinha a rara capacidade de, ao explicar, fazer com que víssemos mesmo como o processo ocorria. De fato, saber matéria não habilita ninguém a ser professor. Um professor precisa saber a matéria, que é o mínimo que se espera, mas precisa saber didática, saber ensinar, saber ver se o aluno aprendeu ou não. Salvo em casos de demência, quando um aluno não aprende a culpa é de quem não soube ensinar. Se bem que eu não sei raiz quadrada até hoje e o que não faltou foi professores interessados em me ensinar. Vai ver que, para raiz quadrada, eu sou mesmo um demente. Não posso deixar de citar mestre Dejalma. Dejalma foi um professor de Português com forte sotaque interiorano e de uma simplicidade que nunca combinou aparentemente com sua cultura e saber. Nóis fala cheio de erro no interior, porque é nosso jeito de falá. Principalmente economizamos “S” a dar com pau. Também não terminamos as palavras. Cidade, por exemplo, vira “CIDAd...”. Quase nem o último “d” colocamos pra fora. Mas Dejalma falava no nosso cantar sem errar nadinha. Era um português culto cantado num caipira delicioso. Dejalma também tinha a capacidade de explicar o porquê das coisas e isso ajuda muito. Outro mestre de Português que tive foi o professor Joãozinho Galassi, que sempre mentiu saber mais de 100.000 palavras, mas sabia mais de 50.000 o que já é um prodígio. João Galassi era mestre em explicar a origem das palavras, de tal forma que palavra que se aprende com Galassi raramente esquecemos. Ele que me ensinou o maior palíndromo que existe na língua portuguesa. Caso não inventaram um maior é: “SOCORRAM- ME. SUBI NO ÔNIBUS EM MARROCOS”. Palíndromo é uma frase ou palavra que se pode ler de trás pra frente e de frente pra trás que dá na mesma. Nesse Dia do Professor, quero cumprimentar todos os professores sérios e profissionais de verdade, que dedicaram suas vidas a transmitir saber. Quero rogar, com sinceridade, para que o Ministério da Educação recicle e mande de volta para a escola os pobres professores que até se esforçam mas não sabem a matéria que ensinam porque não aprenderam. A lógica de que quem sabe, sabe, e quem não sabe dá aulas, tem que acabar. Até o trocadilho é porco. Quero bendizer as professoras nordestinas, que em alguns grotões caminham quilômetros para improvisar uma escola debaixo de uma árvore, com uma lousinha pregada no tronco e poucos tocos de giz, mas ensinam seus alunos dentro até do impossível, para ganhar um salário mínimo no final do mês. Podem fazer a conta que quiserem. A grandeza de um país se mede pela qualidade e pelo salário de seus professores. E nesse quesito o Brasil ainda pode chegar lá. Até creio de verdade que vai chegar. Mas está longe, muito longe, falta muito, vai levar tempo. E finalmente o meu repúdio às escolas particulares que destruíram o ensino público tirando de lá os bons professores, dando a eles até cinco vezes ou mais o que ganhavam em salários, mas depois foram substituindo-os por outros mais baratos e baixando o nível do ensino. Hoje, com as devidas mas raras exceções, estudar em escola pública ou particular só muda a paisagem. O conteúdo continua uma merda. A rede particular de ensino está despejando analfabetos no mercado quase na mesma proporção que as escolas públicas. E, fora questões mercantilistas e de oportunidades pouco honestas, não há nada no mundo que justifique uma coisa dessas. Só peço aos tantos outros mestres que tive, cuja deficiência de memória me fizeram esquecer, que me perdoem. Cada um sabe o bem que me fez e eu vou lembrando a cada caso. O duro é lembrar de todos no espaço de tempo que eu tenho para escrever essa crônica. Minha sincera reverência a todos vocês. /Zé Caparica