domingo, 19 de outubro de 2008

QUEM SE LEMBRA ? A IPIRANGA E A AV. SÃO JOÃO !

Caetano Veloso, em sua música “Sampa”, imortalizou esse cruzamento na cidade de São Paulo. Mas não foi à toa. De fato, quando se vive São Paulo de verdade, e se trabalha ou mora lá por perto como foi o meu caso, esse cruzamento que passa despercebido de tanto a gente cruzar, é um marco de referência até social e cultural. Funciona, mais ou menos, como “o lado de lá” da Ipiranga, ou “o lado de cá” da São João. E nesses quadrantes se encaixam, ou ao menos se encaixavam quando eu por lá trabalhava, tudo de bom e de ruim para todas as classes sociais de “A” a “E”. Anda-se de carro só pelas avenidas. No mais, embora seja possível, o bom é andar a pé e descobrir coisas muito interessantes. Bem na esquina da Ipiranga com a São João fica o Bar Brahma. É um bar chiquérrimo. Cauby Peixoto canta ali todas as terças-feiras. Já na quadra seguinte fica a Praça da República. No final dos anos 60 era ali, na praça, que os hippies se reuniam para vender seus artesanatos que produziam durante a semana. Eram coisas muito legais, interessantes mesmo. Aí alguns pintores começaram a expor suas obras e ao mesmo tempo que vendiam pintavam, de forma que a coisa ficava dinâmica. Logo ao lado o artista com um bloco grande de papel e um bom lápis fazia sua caricatura em poucos minutos e por pouco dinheiro. Tinha de tudo o que se pudesse imaginar de artesanatos em couro e tudo original. Depois, como sempre, a coisa desanda e, na última vez que estive lá, a coisa estava tão desvirtuada que até coelho de pelúcia produzido na China tinha lá pra vender. Fiquei magoado. Era uma delícia ir domingo de manhã na Praça da República. Era chique/cultural. Hoje é um programão de índio. Àquela época havia grandes cinemas com preços baixos. Depois é que os shoppings inventaram de fazer pequenos cinemas a preços extorsivos. Então, do lado de cá da São João, do lado da Pça. da República, passavam os filmes “bons” e os grandes lançamentos. Havia dois cinemas enormes, para mais de 1.000 pessoas. Hoje o Macedão ou o R.R. Soares já devem ter comprado pra fazer igreja. Já do lado de lá da Av. São João passavam os filmes “ruins”. Ruins queria dizer as pornochanchadas. As pornochanchadas eram produções brasileiras onde havia umas duas ou três cenas de nudez gratuita. Mas no meio desses cinemas “ruins”, tinha um bom. Bem na esquina da Ipiranga com a Av. Rio Branco. Era o Cine Windsor. Só passava filmes bons e muito bons. Mas era 1976 e a gente vivia numa censura das brabas. Me lembro que no filme “Laranja Mecânica” a censura mandou tapar as genitálias com uma bolinha preta. Então ficava hilariante. Aliás toda a censura, se não fosse terrível, seria sempre uma comédia. Eis que surge no Brasil um filme tido como uma obra de arte. Era “O Império dos Sentidos” dirigido por Nagisa Oshima, um consagrado diretor do cinema japonês e mundial. Trata-se de uma produção Franco/Japonesa, onde uma prostituta começa com algumas gracinhas com seu patrão, na casa onde trabalhava, e dali a coisa vira uma paixão louca e fora de controle, até o final onde ela corta o bilau dele (a obra merecia um resumo mais cultural. Me desculpem). O filme é de fato muito bom. Mas tinha o “defeito”, à época , de ser realista demais. Não era pornográfico. Mas não insinuava. Mostrava como era mesmo. Então se via genitália o tempo todo. Numa das cenas ele enfia um ovo cozido lá, e aí ela brinca de botar o ovo e ele come, etc. Eram todas as cenas mostradas com o devido realismo. Como a gente só via nudez de “pequeno porte”, aquilo virou uma farofa. Para começar esse filme era uma chatice por ser em japonês e porque os dois ficavam no quarto o tempo todo. Mas a crítica mundial o aclamou como uma das maiores obras de arte já vistas no cinema, de forma que não ficava bem não ir assistir ao “O Império dos Sentidos”. Como a cultura muda as coisas. De um lado o povo “cult”, querendo ver a obra de arte, e de outro um monte de gente que não sabia nem quem era o japonês, querendo ver todo mundo pelado e fazendo farra sexual ao vivo, sem cortes. Sabem o que aconteceu? Todos os “cults” viram e os outros, digamos assim, continuaram a ver. Eu acho que “O Império dos Sentidos” ficou em cartaz por dois ou mais anos. E aí, pobre Cine Windsor, virou cinema de pornografia e vive disso até hoje, com travestis em busca de programas rondando pela sala. Mas, por outro lado, já estava na área. Bastava atravessar a rua em direção à Rua Aurora e já se encontravam as casas de streap-teases. Vendo os filmes pornôs de hoje, como éramos pudicos... A gente comprava ingresso (tudo era muito barato àquela época) para o Teatro Santana. Daí tinha um showzinho de humor barato e baixo nível que durava una 15 minutos e depois as moças entravam, uma a uma, ensaiadas, passeavam suas coreografias pelo palco, as roupas iam caindo, daí tirava a parte de cima, e depois a de baixo, aí mostravam a xoxota pra gente, acabava a música e elas saíam. E aí entrava a outra. Tinha outros teatros do gênero, mas o Santana era o famoso. Assim que virávamos a esquina a realidade mudava. Mais uma quadra e já estávamos no “lado de lá” da Av. Ipiranga. Ali a coisa era mais séria. Tinha bons cinemas e lá ficava, como deve estar lá até hoje, o famosérrimo “Filé do Moraes” e seu filet mignon alho e óleo. Com salada de agrião. O restaurante era um lixo, sujo e sem cuidado, mas o filet era “dos deuses” e custava, como ainda custa, uma fortuna. Já do “lado de cá” da Av. Ipiranga, era a refestelança dos pobres. Ali tinha de tudo para se comer na rua, inclusive o churrasquinho grego, coisa mais saborosa do mundo, que ninguém sabe como se faz e é bom continuar sem saber. Do outro lado da rua tem o Rei do Mate e um monte de chinês fritando pastel. É uma pastelaria do lado da outra. Todas ruins, todas sujas, e todas lotadas. Se a gente fizer um raio de 500 metros a partir do cruzamento da Av. Ipiranga e Av. São João, acha-se das mais refinadas joalherias do mundo, hotéis de 5, 4, 3 e 2 estrelas, a Praça da República, o baixo meretrício da Rua Aurora e a “cracolândia”, o reduto gay na Rua Rêgo Freitas, etc. O melhor bolinho de bacalhau do Brasil, até a antes chiquérrima Av. São Luiz e o Edifício Copon projetado por Oscar Niemeyer. E se continuar a andar e fuçar em todas as galerias e ruazinhas, com certeza vai ter uma surpresa atrás da outra, como as ruas Barão de Itapetininga e a Sete de Abril. Esse cruzamento cria quatro bandas. Cada banda tem seus detalhes, suas realidades e seus encantos. Era do tempo que os mais ricos conviviam em paz com os mais pobres, cada um no seu canto. Mas um dia os ricos foram embora e acabou-se o charme maior, que era justamente esse “saber viver junto”. Mas os novos ricos, do dinheiro fácil e estupidez aguda, junto com a máfia chinesa, estragaram o reduto. Ainda diverte-se por lá, dizem alguns amigos, mas o explendor dos constrastes brutais já se foi. Quem viu, viu. Quem não viu... /Zé Caparica